São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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GERAÇÃO 40

CARLOS HEITOR CONY
O mundo entra em casa


Sem TV, todos se toleravam e, o que era mais extraordinário, às vezes se amavam


Não apenas na família, mas na sociedade em geral, o comportamento da humanidade encontrou, nos anos 40, uma espécie de praia na qual muitos morreriam e outros se salvariam -salvação aparente, porque o ideal de felicidade pretendido não seria alcançado nas décadas seguintes.
A quarta década do século foi atípica. Até a metade, ou seja, até 1945, havia a Segunda Guerra Mundial amarrando-a a valores e compromissos dos anos 30. Na outra metade, não se sabia ao certo o que poderia representar o pacote trazido pela paz: a Coca-Cola, a matéria plástica, "Moonlight Serenade", os cigarros com filtro e os filmes da Atlântida. Juntando tudo, boa coisa não podia ser.
Não havia a pílula e o coito interfemural era o maior quebra-galho. Até casais formalizados o praticavam nos dias de fertilidade da mulher -já havia a tendência de evitar prole indesejada. Pais iniciavam uma discreta tentativa de diálogo com filhos, sobretudo para que evitassem dívidas e moléstias venéreas.
O advento da penicilina, no fim da década, parecia resgatar o meretrício, os bordéis onde os jovens se iniciavam -entre outros motivos, porque as jovens mantinham a virgindade até certo ponto. Mas em caso de barbeiragem maior, se aparecessem grávidas, os pais não mais as expulsavam de casa.
A beleza não era fundamental. Um candidato presidencial solteiro e bonito (Eduardo Gomes) foi derrotado por um dos homens mais feios do planeta (Dutra). Para casar, bastava o jovem demonstrar que tinha um futuro. E a jovem, uma eficiência corporal que incluía hímen intacto e, se possível, coxas pródigas.
Por falar em futuro: era importante pra burro. No início da década, Stefan Zweig escreveria um livro remetendo o Brasil para lá. As urgências eram lerdas e fragmentadas, não havia o "aqui e agora". Dentro de casa, sem TV e sem ar refrigerado, a família continuava unida e reunida mais ou menos por falta de alternativas. Todos se toleravam e -o que era extraordinário- às vezes se amavam.
Os filhos exigiam pouco dos pais, mas ficavam putos da vida quando descobriam que um dos dois traía o outro. Os pais tinham a mania de se apresentarem aos filhos como sobreviventes de uma idade de ouro.
O conflito de gerações chegava a níveis insuportáveis nas pequeninas discussões do cotidiano: qual a melhor orquestra, a de Tommy Dorsey ou a de Francisco Canaro; qual a melhor estação de águas, Caxambu ou Poços de Caldas. Briga mesmo, só saía quando um filho dizia palavrão na presença da mãe ou da irmã.
Ninguém sabia então, mas a família preparava-se para sofrer um golpe mortal com o advento da TV nos primeiros anos da década seguinte. Trêmula e prateada, a telinha trouxe um estranho para dentro de casa: o mundo. De início, um hóspede cordial e divertido. Mais tarde, um dono cruel e chato.


CARLOS HEITOR CONY, do Conselho Editorial e colunista da Folha, nasceu no Rio de Janeiro em 1926 e tinha 16 anos em 1940.



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