São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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Eles também fingem prazer...

...e elas dão mais importância ao próprio prazer; devagar, comportamentos sexuais dos dois gêneros se aproximam

HELOÍSA HELVÉCIA
EDITORA DO VITRINE

A minoria insatisfeita diminuiu, pelo menos na pesquisa. Doze anos atrás, 46% dos brasileiros diziam ter orgasmos "sempre". Agora, mais da metade da população cravou essa resposta. Daí a concluir que o prazer no país vai bem obrigado há uma distância. A mesma que separa a mulher do homem, quando o tema é sexo.
É o homem, claro, quem levanta a média do gozo líquido e certo, em todo ato sexual: 76% compareceram com o categórico "sempre". Entre elas, 39%.
E já é muito. "Bom demais para ser verdade", duvida a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da pós-graduação na UFRJ. Para ela, o fato de tantas mulheres dizerem que chegam lá toda vez que transam reflete não o prazer, mas o dever. "É o novo discurso da brasileira, bombardeada pela cultura que a obriga a gozar."
Isso de ditadura do orgasmo "é babaquice", na visão da psicanalista Regina Navarro Lins, autora de "A Cama na Varanda". Segundo ela, o clichê é a reação velada à evolução feminina. "Não tem isso de obrigação. Orgasmo é o maior prazer físico do ser humano. Todo mundo quer, homem ou mulher. E toda mulher deve ter."
E pode. Qualquer uma está apta aos espasmos, contrações uterinas e latejamento pélvico, desde que não sofra doença neuro, endocrino ou ginecológica que tenha destruído a base física do êxtase -coisa rara, diz o psiquiatra Joel Rennó Júnior, que coordena o Pró-Mulher do Hospital das Clínicas.
Se os impedimentos físicos ao prazer feminino são estatisticamente desprezíveis, os psicoculturais dão uma bíblia. Nos consultórios, a sequela dos séculos de repressão atende pelo nome de anorgasmia e, agora, vem associada não só a velhos tabus e preconceitos como à nova angústia da mulher com o próprio orgasmo, o que a impede de, literalmente, relaxar e gozar, segundo Rennó.
"A mulher quer gozar para satisfazer o outro, não a si mesma", diz Goldenberg, que vê semelhanças nos discursos dos dois sexos, não nas atitudes. Ela critica o culto do orgasmo em detrimento de outros prazeres.
Muita gente está com ela: a frase segundo a qual se divertir na cama é mais importante que gozar teve a aquiescência da maioria das mulheres.
Só que o jogo do contente, na cama, pode levar a uma frigidez às vezes irreversível, diz o psiquiatra. "Mulheres que tentam negar a importância do orgasmo e se adaptar à disfunção acabam desinteressadas de sexo. Muitas desenvolvem ausência geral de resposta sexual."

"Passamos do desinteresse total pelo prazer feminino para a atual ditadura do orgasmo"
Mirian Goldenberg,
antropóloga

"Já fingi várias vezes. Finjo porque acho que a mulher fica mal de não conseguir me fazer gozar"
Cesar Serafim,
engenheiro civil

Contra a frigidez e a falta de interesse no sexo, tome gritos, gemidos e dor de cabeça.
Mas representar um orgasmo ou inventar uma mentira para evitar o sexo, truques classica e cansativamente colados às mulheres, não são de seu uso exclusivo. Aqui, também, quando se trata de afastar um corpo do outro, a pesquisa mostra uma aproximação entre os comportamentos deles e delas.
Metade das entrevistadas admitiu já ter fingido um orgasmo. Quem não sabe. Curioso é 26% dos homens confessarem que também já simularam.
Antes de decifrar como e por que um homem finge, não custa lembrar: orgasmo e ejaculação são coisas distintas, embora andem juntas. "Seria preciso saber o que eles chamam de fingir orgasmo, se é fingir a ejaculação ou o prazer", ressalva a educadora Maria Helena Vilela.
Segundo ela, que dirige o instituto Kaplan - Centro de Estudos da Sexualidade Humana, mulher não lida bem com o homem que não ejacula. "Ela fica na expectativa da ejaculação."
Não seja por isso. "Eles aderiram à prática feminina, o esperma não entra mais em contato com a mulher, ela não tem como saber", confirma Rennó. Com o auxílio do seu novo objeto de cena, o homem interpreta orgasmos por motivos similares aos das mulheres, mais os seus porquês exclusivos, como medo de não sustentar a ereção e ejaculação retardada -disfunção menos popular que a precoce, psicológica ou ligada ao uso de antidepressivos.
Um pouco de encenação faz parte, já que a sexualidade desta espécie é composta de animalidade e artifício, como definiu a ensaísta americana Camille Paglia.
É mais fácil alegar uma indisposição do que explicar ao companheiro por que não se está a fim de transar. Não é como recusar comida ou bebida.
Mas deveria, segundo Vilela: "Os relacionamentos são pouco autênticos porque não se respeita o sexo como função orgânica. Tudo bem você ter insônia, não é vergonha não ter fome. No sexo, não se admite".
A vergonha, o medo do julgamento e todos os condicionamentos sociais criam para o sexo uma exigência desumana, segue a terapeuta. "O fato de um não querer já desencadeia no outro fantasias de que há um problema. Então, para evitar "discutir a relação", surge a desculpa. O que deveria ser a consequência espontânea da excitação vira mentira. É preciso botar o sexo no seu lugar, de função natural do organismo."
Essa é também a visão de Navarro Lins, a detonadora número um das frases feitas. "Sexo é como beber água, é uma função biológica. Quem critica sua banalização está preso à ideia de que tudo ligado a corpo é feio e sujo. Nada mais banal que sexo, no sentido de comum. Está sendo banalizado e será ainda mais."
Os resultados da pesquisa reforçam que o muro entre homem e mulher está se dissolvendo, na análise da sexóloga: "Vemos o lento desmoronamento do sistema patriarcal".
Um sinal disso, para todos os especialistas aqui, é o novo interesse masculino no prazer feminino: o medo de não satisfazer a parceira atormenta 56% dos pesquisados (leia à pág.9).
Navarro Lins comenta: "O homem quer trocar, começa a se livrar dos mitos das masculinidade. E a mulher começa a separar amor e sexo, o que é essencial. Passou da hora de descomplicar, para que o sexo deixe de ser essa grande fonte de tanto sofrimento humano".


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