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ANÁLISE
A mais brasileira
Fiel a seu plano original, Brasília vive o paradoxo
de ter sido idealizada para ser o oposto do país e
ser a mais perfeita expressão de sua desigualdade
por GUILHERME WISNIK
especial para a Folha
Brasília é uma cidade linear e dicotômica. Constituída por dois
eixos, o rodoviário-residencial
e o monumental, ela se estrutura através da nítida separação
entre duas escalas, isto é, duas
distintas dimensões da vida urbana: a vida cotidiana e a expressão simbólica do poder.
Antes uma cruz de fundação do
que a imagem de um avião
-quem usou a metáfora do
avião foi Mário Pedrosa, e não
Lucio Costa-, os dois eixos
cruzados surgiram para delimitar as duas escalas da cidade: a
urbs e a civitas, uma intimista,
outra monumental.
Pai tanto da arquitetura moderna brasileira quanto do nosso conceito de patrimônio histórico, Lucio Costa procurou
resgatar, na superquadra, a vida
pacata das cidades coloniais,
que tanto apreciava. Emolduradas por espessas cintas arborizadas, as superquadras deviam se configurar, segundo
sua concepção, como "claustros urbanos", isto é, unidades
de vizinhança voltadas para
dentro, e invisíveis aos olhos
dos passantes motorizados,
que atravessariam o eixão emparedados por uma cortina verde, e veriam surgir a "cidade"
apenas no Eixo Monumental,
com o amplo horizonte e os edifícios simbólicos projetados
por Oscar Niemeyer.
O que ficou claro como problema, desde logo, é a ausência
de uma escala intermediária: o
lugar do comércio, da agitação
da vida na rua, do encontro e do
conflito. Tudo, enfim, que deu
munição ao falso mito de que
Brasília não tem esquinas. Essa
escala intermediária, no entanto, estava prevista no plano de
Costa. Chamada de "gregária",
ela devia existir como um anel
em torno da plataforma rodoviária -o encontro entre os eixos-, e assumiria uma forma
vernacular, com alusões à rua
do Ouvidor e às vielas venezianas, formada por galerias cobertas e pátios. Ocorre que isso
não saiu do papel. Tanto por razões de praticidade, quanto
porque era o elemento menos
desenvolvido do plano. Dicotômico em essência, o seu desenho não chegou a incorporar
convincentemente a escala intermediária, que tanta falta faz.
Mas esse não foi um atributo
-ou um problema- específico
do seu projeto. Como toda a revisão crítica já mostrou, o propósito explícito de "matar a rua
tradicional" estava na base da
cartilha urbana modernista,
que figurou a cidade como um
parque de lazer pontuado por
edifícios, para dentro dos quais
se deslocaria toda a sociabilidade urbana. Apesar de sua abstração maquinista, o urbanismo moderno reagia à confusão
da metrópole industrial, sendo
atraído pelo bucolismo do modelo das cidades-jardim, que a
partir dos anos 1950 começava
a suburbanizar as grandes cidades, de braços dados com a proliferação do automóvel.
Brasília sobrevive à intensa
polêmica entre modernos e
pós-modernos, da qual foi vítima por tanto tempo. Na prova
dos nove de sua experiência
concreta, a avaliação da cidade
parece também curiosamente
dicotômica: ela é, em geral,
amada por seus moradores, e
detestada pelos visitantes e residentes temporários. O que
nos leva à seguinte constatação: enquanto, por um lado, as
famílias estabelecidas na capital desfrutam de uma qualidade
de vida sem par no Brasil, uma
vez que as superquadras são reservatórios idílicos de uma ética coletivista que foi desaparecendo cada vez mais, com a escalada da violência e do privativismo, por outro lado, visitantes ou moradores ocasionais
são, via de regra, assaltados pelos efeitos da agorafobia (o distúrbio diante dos amplos espaços abertos), e tomados por
uma irremediável melancolia
com a vida bucólica das superquadras. Sem automóvel e isolado no setor hoteleiro, ou, ao
contrário, refém de um carro
alugado que o conduz a infinitas autopistas e cul-de-sacs, o
forasteiro se sente desamparado, como em um tedioso faroeste sem bangue-bangue.
No fundo, o ideal de Lucio
Costa era o de uma classe média generalizada, esclarecida e
despojada, mas cujos traços de
urbanidade conservassem as
marcas de uma vida provinciana. E nisso ele foi, certamente,
bem sucedido. Arrefecidas as
grandes batalhas ideológicas
em torno de Brasília, vemos hoje uma cidade que funciona
quase que rigorosamente como
foi projetada: o Eixo Monumental existe de fato enquanto
imagem do poder, apenas para
ser filmado e fotografado, e o
eixo rodoviário-residencial é o
paraíso da família pacata, da
classe média e do funcionalismo público. A diferença é que a
massa de trabalhadores atraídos para esse Eldorado nunca
se tornou classe média, e ao inchar as cidades-satélites fez da
grande Brasília um dos lugares
de maior desigualdade social
no mundo, como mostra o recente relatório da ONU. Quer
dizer que a dicotomia original
se espraiou para a relação entre
o Plano Piloto e seu entorno. E
assim, de forma paradoxal,
aquilo que nasceu como o oposto do Brasil acabou explicitando a sua realidade profunda.
Curiosamente, hoje Brasília é a
mais brasileira das cidades.
GUILHERME WISNIK , crítico de arquitetura, é
autor de "Lucio Costa" (Cosac Naify) e "Estado
Crítico" (Publifolha)
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