São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Regime autoritário e tempero positivista

MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O autoritarismo brasileiro tem sua própria história: não é um mero reflexo do que ocorreu na Europa ou a reprodução atrasada, tardia, do nazifascismo. O Estado Novo foi apenas um momento deste processo -que não parece encerrado. A gênese pode ser encontrada no final do século 19, quando um grupo de republicanos, desiludidos com os rumos do novo regime, criticou severamente o domínio da elite política latifundiária, "a república dos fazendeiros". A reforma econômico-social passava pelo controle do governo central; porém isto não se daria apelando ao voto. Lembrando Karl Marx, era necessário assaltar o céu. O autoritarismo reformista -afinal nem todo autoritário é reacionário- apontava para a organização de um Estado forte, distante do liberalismo conservador das elites brasileiras.
Os revolucionários de 30 vão realizar esta tarefa -tendo à frente Getúlio Vargas. A criação de ministérios, secretarias, autarquias e de uma ampla legislação econômico-social, deu ao país as condições necessárias para enfrentar os grandes desafios colocados pela crise mundial de 1929.
Retirar o Brasil da crise econômica, reinserí-lo em uma ordem mundial complexa, como a dos anos 30 -marcada pela consolidação do fascismo na Itália, do salazarismo em Portugal, a ascensão do nazismo na Alemanha e a depressão que atingiu os Estados Unidos-, permitindo a recuperação econômica já em meados de 1933, só poderia ser realizado por um Estado forte e sob novas bases sociais, rompendo com a Política dos Governadores idealizada por Campos Sales. Ou seja, não seria possível realizar o programa reformista no interior da ordem liberal tradicional, devido ao domínio exercido pelas elites políticas latifundiárias das estruturas do Estado, especialmente a burguesia cafeeira. Esta deu seu último suspiro em 1932: derrotada, abriu caminho para o estabelecimento da modernidade.
Nos 15 anos do primeiro governo, somente entre 1933-1935 é que Getúlio teve de conviver com um Congresso Nacional atuante. Nos 13 anos restantes governou 3 com o Legislativo fechado (1930-1933), outros 2 renovando periodicamente o Estado de Guerra (1935-1937) e mais 8 sob a vigência da Constituição de 1937, que dava amplos poderes ao presidente.
A dificuldade de se enquadrar em uma ordem democrática não era só de Vargas: seus opositores tentaram três vezes derrubá-lo com movimentos armados, como os liberais em 1932, os comunistas em 1935 e os integralistas em 1938. Foi neste ambiente, sem tradição democrática, que não distinguia a baioneta do voto, que foi gestado o autoritarismo varguista.
O presidente buscou se equilibrar entre as diferentes facções políticas que compuseram seu governo e nem sempre fez o que desejava, como pode ser observado pela leitura dos seus diários. Administrou vaidades, concedeu prebendas, até para seus adversários, mas nunca teve o poder absoluto. Até porque, devido a ampla repressão política, especialmente depois de novembro de 1935, tinha inimigos desde à direita, passando pelo centro até chegar à esquerda. O mais estranho é que tenha conseguido ficar 15 anos no poder.
É um lugar comum associar o varguismo e o fascismo, embora não haja relação substancial entre um e outro. Onde estão o partido único e os sindicatos corporativos, tão essenciais ao fascismo? Em seus discursos (basta consultar os volumes de "A Nova Política do Brasil") não há referências a conceitos fascistas.
É fascista porque regulamentou os sindicatos? Por que criou a Justiça do Trabalho? Ou devido a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho? Getúlio agiu de acordo com o figurino autoritário brasileiro, temperado com a tradição castilhista gaúcha, onde o positivismo foi adotado como política de Estado, caso único não só no Brasil, como no mundo. Seu ídolo nunca foi Mussolini, mas sim Júlio de Castilhos: "Um santo. É santo porque é puro, é puro porque é grande, é grande porque é sábio, é sábio porque, quando o Brasil inteiro debate-se na noite trevosa da dúvida e da incerteza, quando outros Estados cobertos de andrajos com as finanças desmanteladas, batem às portas da bancarrota, o Rio Grande é o timoneiro da Pátria, é o santelmo brilhante espargindo luz para o futuro".
Dada a conjuntura mundial volátil e a fragilidade do poder interno, Vargas teve de construir políticas ao sabor dos acontecimentos, sem que necessariamente pudesse prever o que iria ocorrer. A racionalização elaborada por pesquisadores, anos depois, dá uma coerência que não foi estabelecida a priori. Esta espécie de quarta via -distante tanto do fascismo como do liberalismo e do comunismo-, associou ousadas reformas econômicas, sociais e educacionais, com uma política externa com laivos de independência, rompendo com o imobilismo de décadas do Itamaraty, desde a morte do Barão do Rio Branco. Tudo isso, tendo um projeto nacional esboçado em pleno calor da hora e o Estado como principal indutor do desenvolvimento.
Com o final da Segunda Guerra Mundial e as modificações ocorridas no Brasil decorrentes dos próprios êxitos econômicos do getulismo (desenvolvimento da indústria, urbanização, ampliação do aparelho de Estado), o autoritarismo estava com seus dias contados. Pena que o 29 de outubro de 1945 tenha sido um golpe militar reacionário.


Marco Antonio Villa é historiador, professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil" (Globo).


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