São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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A doce vida na capital de um país dividido

Quando o Rio era uma festa, o mundo se repartia entre lacerdistas e getulistas

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Era a madrugada de 5 de agosto de 54, e já estávamos dormindo quando o telefone tocou. Samuel atendeu, acendeu o abajur e, à medida que ouvia, ia se aprumando, se sentando; acabou o telefonema em pé, vestindo a calça.
- O quê? Atentado na rua Tonelero? Mataram um major da Aeronáutica? Mataram Lacerda também? Não? Merda!
Em segundos, ele saiu e foi para a "Última Hora". Estávamos casados havia dois meses, esperava meu primeiro filho, e durante um bom mês quase não nos vimos.
Tinha chegado de Paris em maio de 53, depois de ter trabalhado por dois anos como manequim de Jacques Fath. Em julho, estava numa noite no Bar 36, em Copacabana, quando um amigo, Sergio Figueiredo, levantou-se e disse que tinha que ir. "Vai para onde?", perguntei. "Visitar Samuel Wainer na cadeia. Quer ir?" Claro que fui. Fui e me apaixonei.
Nos anos 50, o Brasil era dividido entre lacerdistas e antilacerdistas. Lacerdistas eram os partidários de Carlos Lacerda, ídolo da UDN, jornalista com um talento único, o de destruir. Seu objetivo de vida era derrubar Getúlio Vargas e fechar a "Última Hora", jornal de seu amigo de juventude Samuel Wainer, que apoiava o governo. Os antilacerdistas eram os outros -e nós.
Samuel -que havia sido preso por se recusar a revelar a uma CPI quem financiara o jornal- tinha, então, 42 anos, 43? Não me lembro. Eu, 19. Caí no olho de um baita furacão sem perceber seu tamanho e sua gravidade, e meu pai não foi contra, só exigiu que nos casássemos legalmente. Samuel podia, pois era viúvo da primeira mulher e o seu segundo casamento -que ainda vigorava- era dos modernos, "no Uruguai". Eu havia encontrado, enfim, um bom motivo para ficar no Brasil.

O Rio era uma festa
O Rio, quando capital da República, era uma festa. As embaixadas recebiam para "cocktails" e jantares todas as noites, e o "society" -era assim que se dizia- tropeçava com o poder nos restaurantes e nas boates da cidade.
Boates, não: no Vogue, que era "a" boate. Começava a noite como restaurante, com um pianista tocando; mais tarde as luzes baixavam, entrava um conjunto, e os casais começavam a dançar.
Elas, de chapéu, luvas ou vestido de baile; calça comprida, nem pensar. Os homens só entravam de gravata, e, para facilitar algum romance, havia telefones nos toaletes feminino e masculino.
Depois da 1h, Aracy de Almeida se ajeitava num banquinho e começava a cantar; mais tarde era a vez de Linda Batista. Elas não eram "crooners", mas também não era um show. Todo mundo dançava e conversava, enquanto elas cantavam. O repertório de Aracy era basicamente Noel Rosa, misturado com sucessos como "sinto uma dor no meu peito, só você poderia dar jeito". Já Linda atacava mais de Lupicínio Rodrigues. O Vogue parava quando cantava: "Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar."
Os mais assíduos tinham mesa cativa; quando chegava um não-assíduo importantíssimo, era providenciada uma mesa de pista por Luiz, o maître bonitão que diziam ter um romance com uma chiquérrima da época.
Tinham mesa cativa no Vogue Bejo Vargas, irmão do presidente; Napoleão Alencastro Guimarães, belo gaúcho de quase dois metros, diretor da Central do Brasil; Vadinho Dolabela, pai do ator Carlos Eduardo Dolabela e avô do Dado, com a deslumbrante Vânia Pinto, ex-miss Brasil.
Esses eram os que você encontrava to-das as noites; aí tinha os que você encontrava qua-se todas as noites, que eram os deputados, senadores, a secretária particular de Getúlio, Lourdes Lessa, embaixadores, as rainhas da elegância Lourdes Catão e Thereza Souza Campos, a deslumbrante Dolores Guinle, mulher de Jorginho.
Com o dia clareando, iam-se juntando na porta boêmios que vinham de outros lugares, de camisa esporte. Às vezes, atravessávamos a rua para um fim de noite na boate Tasca, onde tocava um jovem pianista que ainda ninguém conhecia: Tom Jobim.
Alguns saíam em conversíveis, outros, mais românticos, tiravam os sapatos, atravessavam a areia da praia de Copacabana e passeavam de mãos dadas, com os pés na água. Às vezes, elas usavam vestido longo, eles smoking. Uma verdadeira "Dolce Vita" tropical.
Só anos depois fui entender por que, recém-casados, eu e Samuel, saíamos tanto; a bem da verdade, todas as noites. A noite era excelente campo para um jornalista como ele fazer contatos e saber de notícias em primeiríssima mão.
Antes de irmos para casa, de madrugada, era obrigatória uma passada pelo jornal, que já estava rodando. Samuel ia até a redação, à oficina, batia um papinho com cada um que encontrava e saía com dois exemplares quentinhos da "UH" na mão. E vibrando.

Lacerda e o filho de Samuel
Nos casamos em junho de 54, num cartório em Petrópolis. Samuel nunca tinha tido filhos e, quando Lacerda soube da gravidez, aproveitou para fazer uma suprema cafajestada: seu jornal -a "Tribuna da Imprensa"- publicou, em manchete, que ele iria ter um filho brasileiro para não ser expulso do país.
Rapidinho: a família Wainer imigrou da Bessarábia para o Brasil nos idos de 1910, com vários filhos, e a dúvida era se Samuel havia chegado de lá ou se havia nascido aqui. Se fosse bessarabiano, não podia ser dono de jornal e poderia ser expulso do Brasil; se tivesse um filho brasileiro, a lei assegurava seu direito de permanecer no país. A baixaria de Lacerda não me afetou, mas comecei a ver, aos 20 anos, como pode ser sórdido o ser humano.
Relembrando: o atentado da rua Tonelero foi no dia 5 de agosto, Getúlio se suicidou no dia 24. Durante esse tempo mal vi Samuel, que passava os dias -e as noites- no jornal. Ninguém tinha idéia do que ia acontecer: se a renúncia, se um golpe de Estado, seguido ou não de guerra civil, se a "UH" seria fechada ou empastelada, quem iria para a cadeia, se os de lá ou os de cá.
Morávamos num apartamento alugado por 12 mil não sei o quê, na av. Rui Barbosa (por coincidência, ao lado do de dona Darcy Vargas). Ainda não tínhamos móveis na casa, só no quarto: uma cama e duas mesas de cabeceira. A casa ia ser atapetada, como se usava na época, e grandes rolos de tapete de sisal estavam na sala, esperando a colocação.
A semana que antecedeu a morte de Getúlio foi de nervosismo: haviam chamado Bejo Vargas para depor na República do Galeão (inquérito do atentado, que fazia seus interrogatórios na base do Galeão), e corria o boato de que chamariam d. Darcy.

Reuniões no tapete
Entre o atentado da Tonelero e o suicídio de Getúlio, havia reuniões em nossa casa todas as noites, e eu ficava fechada no quarto, enquanto eles ficavam na sala, varando a madrugada, tomando litros de café (e eu preocupada com o horário da empregada).
Na do dia 23 estavam, sentados nos rolos de tapete ou no chão, Alzira, Maneco e Lutero (filhos de Getúlio), Danton Coelho e outros, discutindo possibilidades e traçando estratégias em caso de golpe ou resistência.
Eu não sabia direito o que estava acontecendo; Samuel não tinha tempo para me contar (quando acabavam as reuniões, ele saía correndo para o jornal) e, se contasse, eu também não ia entender bem. Achava a UDN antipática, não sabia direito quem eram aqueles aborrecidíssimos senhores de terno escuro que nunca sorriam, se achando os donos da verdade, fazendo discursos de boa oratória, mas beirando o ridículo, querendo tirar o poder de Vargas. Gente feia e triste; nosso lado era melhor.
Sinto nunca ter conhecido Getúlio para ouvir aquela boa risada que se adivinhava nas fotos, mas Alzira foi madrinha de batismo de minha filha Pinky.
A banda de música da UDN se fazia ouvir diariamente. No dia 9 de agosto, um dos seus mais barulhentos componentes, o líder, o deputado Afonso Arinos de Melo Franco, fez um discurso de suprema agressividade contra Vargas; os lacerdistas deliraram.
"(...) Eu falo a Getúlio Vargas, como presidente e como homem. (...)Tenha coragem de perceber que o seu governo é, hoje, um estuário de lama e um estuário de sangue. (...) Lembre-se dos homens e deste país e tenha a coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo se não for digno de exercê-lo."
Alguns anos depois, Arinos fez mea-culpa: "Éramos como uma matilha de lobos acuando aquele bicho [Getúlio] dentro de um alfojo até ele se matar lá dentro. Isso me desgostou, me deu enjôo. Falar disso é muito difícil".
É curioso lembrar: na véspera do suicídio, a fina flor do lacerdismo se reunia em casa de d. Maria do Carmo de Mello Franco Nabuco, irmã do deputado, para estourar champanhe comemorando a queda iminente do presidente. A alegria durou pouco.
Por volta das 9h do dia 24, Samuel, que passara a noite no jornal, me telefonou, contando que Getúlio havia se matado. Foi rápido, não podia falar mais: que eu ligasse o rádio para saber dos detalhes e que não saísse de casa.
A partir daí, as rádios passaram a tocar música clássica e ler e reler a carta-testamento de Getúlio, que, no fim do dia, eu já sabia de cor. No início, as notícias eram poucas; depois foi-se sabendo do povo chorando na rua e da UDN com o rabo entre as pernas.
Samuel telefonou várias vezes, sempre rapidamente, e um contínuo do jornal passou à noite para pegar camisa, aparelho de barbear, essas coisas. Só apareceu em casa no dia 25, apressado, emocionado e exausto. Tomou um banho, trocou de roupa, pegou um suéter -isso falando várias vezes no telefone-, voltou para o jornal e de lá foi para São Borja, a convite de Alzira, no avião que levava o corpo de Getúlio. Só fui revê-lo dois ou três dias depois.
A vida foi se acalmando -se é que se pode chamar aqueles tempos de calmos-, e já tínhamos mais dois móveis no quarto: uma cadeira e uma mesa com uma máquina de escrever.
Em 8 de dezembro, às 5h30, acordei e disse a Samuel, que estava escrevendo um artigo: "Acho que está chegando a hora". Eram as dores do parto. Elas são ritmadas: começam, por exemplo, de 20 em 20 minutos, depois passam para de 15 em 15, e assim vão indo. Eu, marinheira de primeira viagem, olhava no relógio e dizia aflita: "Samuel, vamos embora, está na hora". Samuel, também aflito e fumando sem parar, respondia: "Um minuto só, já estou acabando". Saímos de casa às 6h35, para o hospital Santa Lúcia, onde Pinky, nossa primeira filha, nasceu, às 8h25, com 3,5 kg e 52 centímetros, linda e sadia.


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