São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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O golpe trágico de 24 de agosto de 1954

Getúlio passou de réu a vítima numa das mais graves crises da República


"Patriarca do roubo", chamava Lacerda a Getúlio. Em maio de 1954, Wainer, defensor apaixonado do presidente, colou para sempre um apelido em Lacerda: 'Corvo'


LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Por volta das 8h do dia 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas deixou seu quarto no Palácio do Catete em direção ao gabinete de trabalho. Logo depois, voltava segurando um objeto no bolso do paletó do pijama. Às 8h30, deu no coração o tiro que mudou a história do país.
Pode-se, hoje, praticamente afirmar que Getúlio tramou sua própria morte ao longo de agosto de 1954, um dos meses mais turbulentos da trajetória republicana brasileira. Com o suicídio, trocou o então enfraquecido poder presidencial por um outro, inabalável: o de mito. "O suicídio foi um golpe de mestre. Um cálculo político muito bem feito", diz a historiadora Maria Celina Soares D'Araújo, autora de vários livros sobre a era Vargas.
Alguns fatos sustentam a hipótese de cálculo premeditado. Em 9 de agosto, Vargas entregou a José Maciel Filho, amigo e redator de muitos de seus discursos, anotações do que mais tarde seria a carta-testamento. Maciel sempre afirmou que acreditava que a carta seria usada para o caso de um eventual golpe de Estado.
"Getúlio tinha tendência suicida", diz o jornalista e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, que está lançando o romance histórico "Getúlio" (Record). "Em 3 de outubro de 1930, o dia da Revolução, ele escreveu no diário: "Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso". Em 1932, redigiu uma carta com o revólver ao alcance da mão. Quando viu que não podia lavar a honra de outra maneira, o suicídio surgiu como coisa natural."
Vargas cuidou para que a carta fosse divulgada após a sua morte. Uma cópia da versão datilografada encontrada ao lado de seu corpo foi entregue por ele a João Goulart na madrugada de 24 de agosto. "Só abra o envelope se me acontecer alguma coisa", disse. Foi o que Jango fez horas depois.
Nos arquivos do presidente seriam descobertas outras duas versões. Uma, de mesmo teor, mas datilografada, teria sido uma precaução de Vargas. A outra, com a sua letra, era um esboço da versão final. Dela não consta a frase "saio da vida para entrar na História".
Do manuscrito constam duas frases que ficaram de fora da carta-testamento: "À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte. Levo a mágoa de não ter feito pelos humildes tudo aquilo que desejava".
Elas foram divulgadas pela Rádio Nacional menos de meia hora após o suicídio. Quem as passou foi o major-aviador Hernani Fittipaldi, ajudante-de-ordens de Vargas, que as encontrara num bilhete, em meados de agosto. Antes de entregar a Alzira, filha do presidente, copiou as frases e memorizou. "Ali eu tive certeza de que o dr. Getúlio pretendia se matar", diz o hoje coronel Fittipaldi, 83, que está escrevendo um livro sobre a época e sua vida.
Ele conta que o presidente, depois de um encontro com um sheik, disse-lhe que na terra de seu interlocutor assassinos eram jogados para morrer no deserto amarrados às suas vítimas. "Aquilo virou um enigma para mim. Depois eu entendi: ao renunciar a alguns anos de vida, dr. Getúlio acabou com seus inimigos", diz Fittipaldi, cassado pela ditadura militar em 1964.
Os grandes inimigos de Vargas eram políticos da UDN (União Democrática Nacional), em especial o jornalista Carlos Lacerda. Na campanha de 1950, Lacerda já mostrara na "Tribuna da Imprensa" que não daria tréguas ao líder gaúcho: "[Vargas] não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar".
Ao som da marchinha de Haroldo Lobo e Marino Pinto ("Bota o retrato do velho outra vez/ Bota no mesmo lugar..."), Vargas foi eleito com 48,7% dos votos, em 3 de outubro de 1950. Tomou posse em 27 de janeiro de 1951. Deposto em 1945 após 15 anos no poder, voltava por desejo popular para fazer um governo nacionalista.
Criou a Petrobras, o BNDES e projetou a Eletrobrás. Junto com as realizações vieram as denúncias de corrupção. "Patriarca do roubo" e "gerente-geral da corrupção no Brasil", chamava-lhe Lacerda. Com a mesma paixão, a "Última Hora", de Samuel Wainer, defendia Vargas. Em maio de 1954, Wainer colou para sempre um apelido em Lacerda: "Corvo".
Mas desde fevereiro, com o "Manifesto dos Coronéis", o cerco se apertava. Os militares queriam mais investimentos nas Forças Armadas, melhores salários e a saída do "comunista" Jango do Ministério do Trabalho.
Para agradá-los, Vargas afastou Jango no dia 22. Mas em 1º de maio encampou a mais radical proposta do ex-ministro: aumento de 100% para o salário mínimo, que passaria a equivaler ao soldo de um segundo-tenente. Além disso, aumentava a contribuição de empresários para a Previdência. "Constituis a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo", discursou Vargas para os trabalhadores, incendiando o conflito com o capital.
A gota d'água pingou nos primeiros minutos de 5 de agosto. Na portaria de seu prédio, em Copacabana, Carlos Lacerda sofreu um suposto atentado -getulistas até hoje não crêem nessa hipótese-, sendo baleado no pé esquerdo. O major-aviador Rubens Vaz, que o acompanhava, foi assassinado. Conduzidas pela Aeronáutica, as investigações sobre o "crime da rua Tonelero" apontaram Gregório Fortunato, chefe da Guarda Pessoal do presidente, como mandante. Lutero, filho de Vargas, e Benjamim, o Bejo, foram postos sob suspeita.
Vargas, que se livrara em junho de um impeachment proposto pelo líder udenista Afonso Arinos, viu seus apoios políticos e militares minguarem. No dia 22, os brigadeiros pediram a renúncia. No Senado, no dia 23, o vice-presidente Café Filho discursou para romper com o presidente.
Quando, às 3h do dia 24, começou a reunião ministerial de emergência, já se sabia que seria a última. Vargas acabou acolhendo a sugestão da licença provisória, mas não sem deixar de evocar a morte: "Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se conseguirem, eu apresentarei o meu pedido de licença. No caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui dentro do palácio o meu cadáver".
Por volta de, respectivamente, 6h e 7h, Vargas recebeu duas notícias que selaram seu destino: Bejo tinha sido chamado para depor; o ministro da Guerra, Zenóbio da Costa, e outros comandantes militares estavam tratando a licença provisória como definitiva.
Decidido a não ser retirado do poder pela segunda vez, Vargas, 72, transformou em verdade a manchete da "Última Hora" do dia 23 de agosto: "Só morto sairei do Catete". Um furo jornalístico que entrou para a história.


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