São Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

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A OPINIÃO DE FORA

Escola divide prestígio com outras instituições

USP perdeu primazia, dizem não-uspianos


"A USP É UMA DENTRE MUITAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS EM BUSCA DE SAÍDA PARA A CRISE"


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Aquela que foi a primeira instituição a articular ensino e pesquisa, a impor um rigor de padrões internacionais à sua produção acadêmica, "alma mater" das ciências humanas institucionalizadas no Brasil, hoje divide parte de seu prestígio com outros centros e se insere, quanto a isso sem grandes distinções, na crise geral das universidades brasileiras. É o que se depreende do relato de personalidades do mundo acadêmico, ao falarem da USP desde o lado "de fora".
O presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Carlos Lessa, ex-reitor da rival UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), prefere ressaltar os traços distintivos iniciais da instituição paulista, moldados em boa parte por uma reação da elite local às derrotas nas Revoluções de 30 e de 32. "A alma paulista buscou uma compensação, construindo alguns marcos, um deles a USP, excelente marco, aliás", diz Lessa. Para ele, a contribuição que essa universidade deu ao conhecimento no Brasil "é isoladamente uma das mais importantes, se não a mais importante".
O ex-reitor exalta o "toque de gênio" -financiado pela burguesia local- de mobilizar "um elenco de jovens professores franceses que, mais tarde, se destacariam no cenário intelectual". Entre eles, o pai da antropologia estrutural, Claude Lévi-Strauss.
Outro traço de distinção da USP, para Lessa, além do "grande rigor na atividade acadêmica", está na "liberdade para que as vaidades se apresentem na sua plenitude". Vaidades que geraram querelas, típicas da vida acadêmica, segundo o presidente do BNDES, como a que envolveu seguidores do sociólogo Florestan Fernandes, preocupados em "erradicar o Gilberto Freyre".
O autor do maior clássico da sociologia brasileira -"Casa Grande e Senzala"- não era visto com bons olhos por muitos desses seguidores por supostamente ter minorado a crueldade da escravidão brasileira ao tentar valorizar a mestiçagem cultural do país.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos principais seguidores de Florestan, representa bem a USP, segundo Lessa. "O professor Fernando Henrique Cardoso era uma glória da USP e um dos mais seletos discípulos de Florestan. Mas, como presidente, de certa maneira deu continuidade aos instintos dessa competição e assumiu a Presidência dizendo: "Vou acabar com a era Vargas". É uma coisa espantosa -se propor a cancelar 50 anos de história do país. Ele foi um presidente da USP. Não, talvez não da USP, mas que expressou muito essa competitividade", afirma.
Lessa diz que a instituição paulista hoje enfrenta a crise geral da universidade brasileira, caracterizada e motivada, a seu ver, por uma razão bastante simples: "Trata-se realmente de um problema de falta de recursos".
O ministro da Educação, Cristovam Buarque, ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília), prefere falar em crise geral da instituição universitária, não só no Brasil.
Para ele, a centralidade da universidade na produção e difusão do saber "foi colocada em questão" com a revolução tecnológica e de comunicação. "A idéia de campus sofre um xeque. Os alunos não precisam ir até lá para terem acesso ao conhecimento."
A USP, "um dos orgulhos do Brasil, como a Amazônia e Copacabana", que se singulariza pelo seu tamanho e qualidade de produção, enfrenta essa crise da mesma maneira que Harvard, por exemplo, ele diz.
Mas o ministro acha positivo -sem entrar no mérito- que seja justamente da USP que saia uma das propostas hoje em debate sobre reforma universitária no país. Um grupo do Fórum de Políticas Públicas, sediado na Universidade de São Paulo, divulgou recentemente um documento com propostas para resgatar o "poder acadêmico" das instituições públicas de ensino superior.
Para Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular do departamento de filosofia da Unicamp, mas formada na USP e que lá deu aulas por mais de 30 anos -"o olhar não é tão de fora", ela diz-, o "apogeu" da Universidade de São Paulo já passou.
"Esse ponto foi atingido quando vigorava o modelo ilustrado de universidade, com as exigências acadêmicas correspondentes: leitura das fontes originais, nas línguas em que foram escritas, inclusive as clássicas, erudição da literatura no campo de trabalho, pesquisa inovadora conforme os padrões científicos, escolha consciente e meditada dos alvos e métodos da investigação."
Muito disso foi perdido, afirma a autora do clássico "Homens Livres na Ordem Escravocrata", com o desmantelamento das instâncias de decisão da USP, em particular, e das universidades públicas em geral. As congregações e conselhos dessas instituições teriam sido ocupadas por sindicatos e colocadas "ao alcance de agrupamentos políticos cujo compromisso exclusivo é com seus próprios interesses", e não com a excelência acadêmica.
Para o historiador João José Reis, da UFBA (Universidade Federal da Bahia), a USP, hoje, "é uma dentre muitas outras universidades públicas em busca de uma saída para a crise, que se resume ao desinvestimento dos governos em relação ao ensino superior e à pesquisa". Antes, até a década de 70, ele diz, a USP representava "o centro mais dinâmico, em algumas disciplinas o único, de treinamento de pesquisadores".
"Hoje a USP continua sendo um celeiro rico de cientistas sociais e historiadores, mas já divide sua excelência com outros importantes centros universitários brasileiros", afirma Reis.


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