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ARTIGO
O saldo positivo de FHC
TED GOERTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
O historiador Perry Anderson
inicia seu relato sobre os oito anos
de Fernando Henrique Cardoso
no poder [publicado na edição da
Folha em 10 de novembro] com
uma lista de realizações notáveis.
A hiperinflação foi derrotada, o
analfabetismo e a mortalidade infantil foram reduzidos, a reforma
agrária foi feita. O aparelho do Estado foi modernizado e se tornou
mais transparente e eficiente. Os
controles sobre os gastos foram
fortalecidos, e o clientelismo regional foi reduzido. Poderíamos
acrescentar vários outros avanços
a essa lista. Houve uma redução
da pobreza, da fome e da desigualdade. O Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil melhorou, o número de matriculados no ensino superior cresceu, a
expectativa de vida aumentou e a
mortalidade provocada pela Aids
teve uma queda acentuada.
A produção agrícola aumentou
muito. As organizações não governamentais desempenharam
um papel novo e criativo na educação e nos programas sociais. Foi
paga compensação às famílias cujos filhos "desapareceram" durante a ditadura militar. Os programas de proteção aos índios e
ao ambiente amazônico foram
grandemente ampliados. As reformas tributárias detalhadas na
Constituição de 1988 foram efetivamente implementadas, com o
recolhimento dos impostos ficando em grande medida centralizado no governo federal, e os recursos sendo distribuídos de acordo
com fórmulas fixas. Foram criados programas para proteger os
direitos dos negros, de outras minorias, dos homossexuais, dos deficientes, das mulheres, das crianças e de outros grupos, incluindo
um programa de combate à violência contra as mulheres.
Para Anderson, porém, todas
essas coisas boas são anuladas pelo suposto fracasso da política
macroeconômica de FHC. Ele
condena FHC por desregulamentar os mercados, privatizar os serviços e depender de investimentos externos para financiar o crescimento, num conjunto de políticas ao qual dá o nome de "neoliberalismo light". Ele vê essas políticas como culpadas pela estagnação econômica, pela queda nos
salários, pelo aumento do desemprego e pelo ônus excessivo da dívida. Mas as economias são caóticas e imprevisíveis, e o ciclo econômico segue sua dinâmica própria. É melhor não atribuir aos
presidentes nem crédito demais,
nem culpa demais pelos altos e
baixos econômicos. Por esse critério, Carlos Menem teria sido um
gênio no início dos anos 1990.
Precisamos de dados específicos, e Anderson apresenta dois
argumentos econômicos específicos. Em primeiro lugar, ele diz
que FHC deveria ter desvalorizado o real antes, em lugar de deixar
acumular dívida e aumentar juros
numa tentativa fracassada de sustentar o atrelamento do real ao
dólar. Olhando em retrospectiva,
todos concordam com isso -até
mesmo o FMI. Mas não era tão
evidente assim na época. Havia o
receio legítimo de que a hiperinflação pudesse voltar. Os economistas do PT não tiveram tanta
visão de futuro quanto afirma Anderson: pensaram que a hiperinflação voltaria após a desvalorização do real.
Em segundo lugar, Anderson
argumenta que o país deveria ter
mostrado mais cautela ao aceitar
investimentos externos especulativos, devido aos riscos de sua fuga repentina do país. Também isso é algo amplamente reconhecido hoje, inclusive pelo FMI. Na
época, porém, havia uma fonte
grande de capital disponível
-bastava pedir- e parecia uma
pena não usá-la para promover o
crescimento nacional. Então Fernando Henrique assumiu o risco
de deixar esse capital entrar, não
prevendo a gravidade das crises
que a economia mundial iria sofrer nos anos seguintes. Os líderes
precisam assumir riscos, e esses
riscos nem sempre levam a resultados tão bons quanto eles esperam.
Com a vantagem da visão retrospectiva, podemos concordar
com esses dois argumentos específicos avançados por Anderson.
Mas a crítica mais geral que ele faz
do chamado "neoliberalismo"
não decorre desses argumentos.
O ""neoliberalismo" é um conceito
demasiado impreciso para poder
merecer elogios ou condenações
gerais. Os dois países que Anderson cita como exemplos do que
FHC deveria ter feito -o Chile e a
China- estão claramente, ambos, no campo "neoliberal".
O Chile foi o primeiro país sul-americano a adotar o "neoliberalismo" e foi amargamente criticado pela esquerda quando o fez,
mas está se saindo bastante bem
hoje. O Chile teve problemas na
década de 1980 e poderia ter voltado atrás, retomando políticas
mais protecionistas, se seus líderes tivessem se excedido em sua
reação a uma desaceleração cíclica. A Argentina, por outro lado,
era vista como o exemplo acabado de "neoliberalismo". As políticas "neoliberais" podem ser boas
ou más, dependendo das circunstâncias específicas.
No caso do Brasil, o país estava
em fase de transição de uma economia dominada pelo Estado para uma economia dominada pelo
mercado. Esse tipo de transição
inevitavelmente provoca custos
sociais, incluindo o desemprego
em setores antes subsidiados ou
favorecidos. Como os marxistas
gostavam de dizer, "não se faz
omelete sem quebrar ovos". O
Chile quebrou seus ovos sob uma
ditadura militar; a China os está
quebrando sob uma ditadura comunista. Na condição de presidente de um país democrático,
dotado de uma Constituição forte
e de partidos oposicionistas dinâmicos, Fernando Henrique tinha
que quebrar o mínimo possível.
A democracia é um valor importante, mas ela realmente dificulta a gestão das transições econômicas, como podemos ver se
compararmos as experiências
russa e chinesa. No Brasil, a oposição democrática dificultou o trabalho de Fernando Henrique em
administrar situações delicadas.
Se Itamar Franco, na condição de
governador de Minas, não tivesse
se negado a pagar a dívida de seu
Estado, FHC talvez pudesse ter
conduzido uma transição gradativa e delicada até uma taxa de
câmbio flutuante. Os militares
chineses ou chilenos jamais teriam permitido esse tipo de insubordinação por parte de um líder
regional. Fernando Henrique a
administrou bem em termos políticos, sem violar as normas democráticas, mas não sem incorrer em
custos econômicos.
O outro argumento específico
apresentado por Perry Anderson
é o de que FHC não deveria ter
promovido uma emenda constitucional para permitir sua reeleição. Também esse ponto é discutível. Sem a reeleição, FHC teria
sido incapaz de tomar qualquer
medida efetiva já no terceiro ano
de seu primeiro mandato. Um
mandato de quatro anos é pouco
tempo para um presidente que
precisa promover transformações
significativas numa sociedade.
Dentro de três anos, muitos dos
atuais críticos de FHC podem começar a enxergar a reeleição sob
uma ótica muito mais positiva.
A oposição forte de esquerda
impediu que fossem levadas
adiante muitas das reformas que
FHC esperava completar, tais como a reforma tributária, a reforma da Previdência e a reforma
política. Parece ser pouco generoso que defensores da esquerda
critiquem Fernando Henrique
por não ter feito coisas às quais a
esquerda montou oposição acirrada durante os oito anos de FHC
na Presidência. Felizmente, Lula
tem a vantagem de contar com o
que promete ser uma oposição
mais responsável e mais construtiva e parece provável que ele leve
adiante muitos dos esforços de reforma iniciados por FHC.
Surpreendentemente, em se tratando de um marxista, o artigo de
Perry Anderson focaliza a liderança, a personalidade e a ideologia, fazendo referência apenas
passageira a classes e forças sociais. O problema é que o conflito
mais relevante, neste caso, não é
aquele que se dá entre capitalistas
e o proletariado, mas o que opõe
os contribuintes aos funcionários
públicos.
Como destaca um estudo recente de Renato Follador, o Brasil
gasta mais com os funcionários
públicos aposentados do que com
a educação, a saúde e a segurança
públicas. As funcionárias públicas
mulheres se aposentam com apenas 48 anos, os homens, aos 53,
todos recebendo salário integral.
Essas são despesas que levam um
país a cair em dívida, e FHC não
foi capaz de resolver o problema
devido à oposição política. Talvez
Lula, na condição de líder de uma
grande central de funcionários
públicos, possa convencer os funcionários públicos a trabalhar pelo menos até os 60 anos e a aceitar
benefícios que o país tenha condições de pagar. Se conseguir, será
uma prova de que possui habilidade persuasiva superior à de Fernando Henrique.
As pessoas procuram três qualidades principais em seus líderes:
competência, força e empatia.
Fernando Henrique Cardoso era
altamente competente e tão forte
quanto era preciso ser. Seu principal ponto fraco era sua incapacidade de transmitir empatia, de fazer a população saber que ele sentia sua dor e compartilhava seus
sonhos. O principal ponto forte
de Lula é justamente sua empatia,
e a população reagiu a ela. Ele
também é um líder forte, mas sua
competência como líder político
nacional ainda não foi posta à
prova. Ele terá que adaptar habilidades que desenvolveu como líder sindical e partidário, e para isso terá a ajuda de uma excelente
equipe de assessores.
A entrevista de Anderson se
mostra mais frágil justamente no
ponto em que um pensamento
claro se faz mais necessário, ou seja, na articulação de políticas para
o futuro. Lula já formulou metas e
aspirações, mas tem sido vago ao
falar de políticas de fato. Ele diz
que quer mudar o modelo econômico, mas não diz que quer renacionalizar indústrias ou fechar o
país aos mercados mundiais.
Perry Anderson espera que Lula
tenha idéias novas e criativas nas
quais ninguém pensou até agora.
Seria ótimo se isso acontecesse,
mas é melhor não contar com essa hipótese.
Em seu livro "A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo: Da Resistência à Ditadura ao
Governo FHC", repleto de insights, o sociólogo Bernardo Sorj
oferece diretrizes muito específicas e úteis. Ele argumenta que um
governo brasileiro de esquerda
deve formar uma coalizão ampla
com grupos de centro, aprender a
conviver com as reformas de livre
mercado, construir um diálogo
com a sociedade civil, respeitar a
disciplina fiscal e dar boas-vindas
a investimentos vindos do exterior. Isso parece ser exatamente o
que Lula se propõe a fazer.
Sorj também observa que tal
política não seria possível se Fernando Henrique Cardoso não tivesse primeiramente implementado as necessárias reformas administrativas e políticas de estabilização fiscal. Os sindicatos e o PT
contestaram essas reformas com
veemência, mas elas precisavam
ser realizadas, e elas deram ao PT
a oportunidade de seguir para a
etapa seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Na condição de sociólogo e de
líder político, Fernando Henrique
Cardoso sempre foi extremamente sensível à maneira como as forças sociais interagem numa conjuntura histórica específica. Em
cada momento da história brasileira desde 1964, ele reconheceu as
limitações impostas pela conjuntura, ao mesmo tempo em que
trabalhou no sentido de transcendê-las. Sem sua liderança nos últimos oito anos, o Brasil poderia facilmente ter derrapado para o tipo de colapso que a Argentina está vivendo. Ao mesmo tempo em
que cometeu erros, o que é inegável, ele os reconheceu e corrigiu
mais rapidamente do que muitos
outros líderes poderiam ter feito.
Fernando Henrique deixa o
Brasil muito mais forte do que estava quando ele assumiu o poder
e está fazendo tudo para ajudar
seu sucessor a levar o progresso
adiante. O Brasil tem sorte de ter
tido um líder de sua qualidade.
TED GOERTZEL, 59, é professor de sociologia na Universidade Rutgers, em
Nova Jersey. É autor de "Fernando Henrique Cardoso e a reconstrução da democracia no Brasil" (Saraiva).
Tradução de Clara Allain
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