São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

O saldo positivo de FHC

TED GOERTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O historiador Perry Anderson inicia seu relato sobre os oito anos de Fernando Henrique Cardoso no poder [publicado na edição da Folha em 10 de novembro] com uma lista de realizações notáveis.
A hiperinflação foi derrotada, o analfabetismo e a mortalidade infantil foram reduzidos, a reforma agrária foi feita. O aparelho do Estado foi modernizado e se tornou mais transparente e eficiente. Os controles sobre os gastos foram fortalecidos, e o clientelismo regional foi reduzido. Poderíamos acrescentar vários outros avanços a essa lista. Houve uma redução da pobreza, da fome e da desigualdade. O Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil melhorou, o número de matriculados no ensino superior cresceu, a expectativa de vida aumentou e a mortalidade provocada pela Aids teve uma queda acentuada.
A produção agrícola aumentou muito. As organizações não governamentais desempenharam um papel novo e criativo na educação e nos programas sociais. Foi paga compensação às famílias cujos filhos "desapareceram" durante a ditadura militar. Os programas de proteção aos índios e ao ambiente amazônico foram grandemente ampliados. As reformas tributárias detalhadas na Constituição de 1988 foram efetivamente implementadas, com o recolhimento dos impostos ficando em grande medida centralizado no governo federal, e os recursos sendo distribuídos de acordo com fórmulas fixas. Foram criados programas para proteger os direitos dos negros, de outras minorias, dos homossexuais, dos deficientes, das mulheres, das crianças e de outros grupos, incluindo um programa de combate à violência contra as mulheres.
Para Anderson, porém, todas essas coisas boas são anuladas pelo suposto fracasso da política macroeconômica de FHC. Ele condena FHC por desregulamentar os mercados, privatizar os serviços e depender de investimentos externos para financiar o crescimento, num conjunto de políticas ao qual dá o nome de "neoliberalismo light". Ele vê essas políticas como culpadas pela estagnação econômica, pela queda nos salários, pelo aumento do desemprego e pelo ônus excessivo da dívida. Mas as economias são caóticas e imprevisíveis, e o ciclo econômico segue sua dinâmica própria. É melhor não atribuir aos presidentes nem crédito demais, nem culpa demais pelos altos e baixos econômicos. Por esse critério, Carlos Menem teria sido um gênio no início dos anos 1990.
Precisamos de dados específicos, e Anderson apresenta dois argumentos econômicos específicos. Em primeiro lugar, ele diz que FHC deveria ter desvalorizado o real antes, em lugar de deixar acumular dívida e aumentar juros numa tentativa fracassada de sustentar o atrelamento do real ao dólar. Olhando em retrospectiva, todos concordam com isso -até mesmo o FMI. Mas não era tão evidente assim na época. Havia o receio legítimo de que a hiperinflação pudesse voltar. Os economistas do PT não tiveram tanta visão de futuro quanto afirma Anderson: pensaram que a hiperinflação voltaria após a desvalorização do real.
Em segundo lugar, Anderson argumenta que o país deveria ter mostrado mais cautela ao aceitar investimentos externos especulativos, devido aos riscos de sua fuga repentina do país. Também isso é algo amplamente reconhecido hoje, inclusive pelo FMI. Na época, porém, havia uma fonte grande de capital disponível -bastava pedir- e parecia uma pena não usá-la para promover o crescimento nacional. Então Fernando Henrique assumiu o risco de deixar esse capital entrar, não prevendo a gravidade das crises que a economia mundial iria sofrer nos anos seguintes. Os líderes precisam assumir riscos, e esses riscos nem sempre levam a resultados tão bons quanto eles esperam.
Com a vantagem da visão retrospectiva, podemos concordar com esses dois argumentos específicos avançados por Anderson. Mas a crítica mais geral que ele faz do chamado "neoliberalismo" não decorre desses argumentos. O ""neoliberalismo" é um conceito demasiado impreciso para poder merecer elogios ou condenações gerais. Os dois países que Anderson cita como exemplos do que FHC deveria ter feito -o Chile e a China- estão claramente, ambos, no campo "neoliberal".
O Chile foi o primeiro país sul-americano a adotar o "neoliberalismo" e foi amargamente criticado pela esquerda quando o fez, mas está se saindo bastante bem hoje. O Chile teve problemas na década de 1980 e poderia ter voltado atrás, retomando políticas mais protecionistas, se seus líderes tivessem se excedido em sua reação a uma desaceleração cíclica. A Argentina, por outro lado, era vista como o exemplo acabado de "neoliberalismo". As políticas "neoliberais" podem ser boas ou más, dependendo das circunstâncias específicas.
No caso do Brasil, o país estava em fase de transição de uma economia dominada pelo Estado para uma economia dominada pelo mercado. Esse tipo de transição inevitavelmente provoca custos sociais, incluindo o desemprego em setores antes subsidiados ou favorecidos. Como os marxistas gostavam de dizer, "não se faz omelete sem quebrar ovos". O Chile quebrou seus ovos sob uma ditadura militar; a China os está quebrando sob uma ditadura comunista. Na condição de presidente de um país democrático, dotado de uma Constituição forte e de partidos oposicionistas dinâmicos, Fernando Henrique tinha que quebrar o mínimo possível.
A democracia é um valor importante, mas ela realmente dificulta a gestão das transições econômicas, como podemos ver se compararmos as experiências russa e chinesa. No Brasil, a oposição democrática dificultou o trabalho de Fernando Henrique em administrar situações delicadas. Se Itamar Franco, na condição de governador de Minas, não tivesse se negado a pagar a dívida de seu Estado, FHC talvez pudesse ter conduzido uma transição gradativa e delicada até uma taxa de câmbio flutuante. Os militares chineses ou chilenos jamais teriam permitido esse tipo de insubordinação por parte de um líder regional. Fernando Henrique a administrou bem em termos políticos, sem violar as normas democráticas, mas não sem incorrer em custos econômicos.
O outro argumento específico apresentado por Perry Anderson é o de que FHC não deveria ter promovido uma emenda constitucional para permitir sua reeleição. Também esse ponto é discutível. Sem a reeleição, FHC teria sido incapaz de tomar qualquer medida efetiva já no terceiro ano de seu primeiro mandato. Um mandato de quatro anos é pouco tempo para um presidente que precisa promover transformações significativas numa sociedade. Dentro de três anos, muitos dos atuais críticos de FHC podem começar a enxergar a reeleição sob uma ótica muito mais positiva.
A oposição forte de esquerda impediu que fossem levadas adiante muitas das reformas que FHC esperava completar, tais como a reforma tributária, a reforma da Previdência e a reforma política. Parece ser pouco generoso que defensores da esquerda critiquem Fernando Henrique por não ter feito coisas às quais a esquerda montou oposição acirrada durante os oito anos de FHC na Presidência. Felizmente, Lula tem a vantagem de contar com o que promete ser uma oposição mais responsável e mais construtiva e parece provável que ele leve adiante muitos dos esforços de reforma iniciados por FHC.
Surpreendentemente, em se tratando de um marxista, o artigo de Perry Anderson focaliza a liderança, a personalidade e a ideologia, fazendo referência apenas passageira a classes e forças sociais. O problema é que o conflito mais relevante, neste caso, não é aquele que se dá entre capitalistas e o proletariado, mas o que opõe os contribuintes aos funcionários públicos.
Como destaca um estudo recente de Renato Follador, o Brasil gasta mais com os funcionários públicos aposentados do que com a educação, a saúde e a segurança públicas. As funcionárias públicas mulheres se aposentam com apenas 48 anos, os homens, aos 53, todos recebendo salário integral. Essas são despesas que levam um país a cair em dívida, e FHC não foi capaz de resolver o problema devido à oposição política. Talvez Lula, na condição de líder de uma grande central de funcionários públicos, possa convencer os funcionários públicos a trabalhar pelo menos até os 60 anos e a aceitar benefícios que o país tenha condições de pagar. Se conseguir, será uma prova de que possui habilidade persuasiva superior à de Fernando Henrique.
As pessoas procuram três qualidades principais em seus líderes: competência, força e empatia. Fernando Henrique Cardoso era altamente competente e tão forte quanto era preciso ser. Seu principal ponto fraco era sua incapacidade de transmitir empatia, de fazer a população saber que ele sentia sua dor e compartilhava seus sonhos. O principal ponto forte de Lula é justamente sua empatia, e a população reagiu a ela. Ele também é um líder forte, mas sua competência como líder político nacional ainda não foi posta à prova. Ele terá que adaptar habilidades que desenvolveu como líder sindical e partidário, e para isso terá a ajuda de uma excelente equipe de assessores.
A entrevista de Anderson se mostra mais frágil justamente no ponto em que um pensamento claro se faz mais necessário, ou seja, na articulação de políticas para o futuro. Lula já formulou metas e aspirações, mas tem sido vago ao falar de políticas de fato. Ele diz que quer mudar o modelo econômico, mas não diz que quer renacionalizar indústrias ou fechar o país aos mercados mundiais. Perry Anderson espera que Lula tenha idéias novas e criativas nas quais ninguém pensou até agora. Seria ótimo se isso acontecesse, mas é melhor não contar com essa hipótese.
Em seu livro "A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo: Da Resistência à Ditadura ao Governo FHC", repleto de insights, o sociólogo Bernardo Sorj oferece diretrizes muito específicas e úteis. Ele argumenta que um governo brasileiro de esquerda deve formar uma coalizão ampla com grupos de centro, aprender a conviver com as reformas de livre mercado, construir um diálogo com a sociedade civil, respeitar a disciplina fiscal e dar boas-vindas a investimentos vindos do exterior. Isso parece ser exatamente o que Lula se propõe a fazer.
Sorj também observa que tal política não seria possível se Fernando Henrique Cardoso não tivesse primeiramente implementado as necessárias reformas administrativas e políticas de estabilização fiscal. Os sindicatos e o PT contestaram essas reformas com veemência, mas elas precisavam ser realizadas, e elas deram ao PT a oportunidade de seguir para a etapa seguinte do desenvolvimento brasileiro.
Na condição de sociólogo e de líder político, Fernando Henrique Cardoso sempre foi extremamente sensível à maneira como as forças sociais interagem numa conjuntura histórica específica. Em cada momento da história brasileira desde 1964, ele reconheceu as limitações impostas pela conjuntura, ao mesmo tempo em que trabalhou no sentido de transcendê-las. Sem sua liderança nos últimos oito anos, o Brasil poderia facilmente ter derrapado para o tipo de colapso que a Argentina está vivendo. Ao mesmo tempo em que cometeu erros, o que é inegável, ele os reconheceu e corrigiu mais rapidamente do que muitos outros líderes poderiam ter feito.
Fernando Henrique deixa o Brasil muito mais forte do que estava quando ele assumiu o poder e está fazendo tudo para ajudar seu sucessor a levar o progresso adiante. O Brasil tem sorte de ter tido um líder de sua qualidade.


TED GOERTZEL, 59, é professor de sociologia na Universidade Rutgers, em Nova Jersey. É autor de "Fernando Henrique Cardoso e a reconstrução da democracia no Brasil" (Saraiva).

Tradução de Clara Allain



Texto Anterior: Outro lado: Para advogado, imóvel valia bem mais na época
Próximo Texto: Frases
Índice


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.