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Preservação à africana
MARILENE FELINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Abrir as fronteiras de três países para a criação de uma área
em comum de preservação ambiental e ecoturismo, mas, ao
mesmo tempo, vigiá-las contra a
imigração ilegal de moçambicanos famintos rumo ao Zimbábue e à África do Sul. Esse é o desafio do projeto do Parque
Transfronteiriço GKG (Transfrontier Park Gaza-Kruger-Gonarezhou), representativo do
conflito entre pobreza e conservação do ambiente na África.
O parque, de 40 mil km2, está
em fase de implantação e tem
previsão de ser inaugurado
em 2003. Vai unir os territórios de Coutada 16, na província de Gaza (sudoeste de Moçambique) e dos parques nacionais Kruger (nordeste da
África do Sul) e Gonarezhou
(sul do Zimbábue).
A fronteira entre Gaza e o Kruger National Park é exatamente
um dos pontos pelos quais trabalhadores moçambicanos se
aventuram para entrar ilegalmente na África do Sul em busca
de emprego e melhores condições de vida. Muitos são devorados pelos leões na travessia. O
parque Kruger já é uma reserva
de caça controlada e com infra-estrutura de turismo de aventura na região.
Inspirado no único outro empreendimento do gênero na
África -o Kgalagadi Transfrontier Park, criado em 2002 entre
as fronteiras de Botsuana e África do Sul-, o GKG é mais um
esforço de nações africanas na
direção do desenvolvimento
sustentável do continente.
O objetivo é administrar de
forma equilibrada os recursos
naturais das três regiões em
questão, tornando acessível sua
vasta flora e fauna selvagem para
o turismo internacional, promovendo a preservação da biodiversidade, criando empregos,
gerando renda e oportunidades
para a população local, afetada
por décadas de guerra civil.
Especialistas responsáveis pela
instalação do GKG apostam no
restabelecimento de rotas históricas de migração animal e outras funções do ecossistema interrompidas por cercas físicas e
legislação incompatível. Nas três
regiões há mais de 500 espécies
de pássaros, 147 espécies de mamíferos, 116 espécies de répteis e
mais de 2.000 espécies de plantas. O parque de Gonarezhou é
rico em sítios arqueológicos,
pinturas rupestres e fósseis de
dinossauro.
O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, que trabalha no
projeto de implantação do GKG,
se mostra entusiasmado com a
iniciativa, que vai abrir pela primeira vez para o público a Coutada 16, um dos tesouros de vida
selvagem em Moçambique.
"As pessoas vão poder transitar com facilidade por três países
dentro do parque e conhecer
uma mistura de experiências
culturais. Os próprios curandeiros locais servirão de guias
turísticos explicando a ciência
deles, contando histórias, apresentando a comida, a música e o
artesanato local", Couto contou
à Folha em junho, em Maputo
(capital do país).
Mas é também na província de
Gaza que o mais recente relatório da FAO (Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) aponta altas
taxas de fome provocadas pela
sequência de cheias e secas entre
2001/2002, além da redução
drástica dos recursos naturais
locais (madeira e caça) como resultado do uso intensivo nos últimos quatro anos.
A maioria da população moçambicana, cerca de 70%, vive
abaixo da linha de pobreza absoluta. As condições de segurança
alimentar em todo o país são fortemente influenciadas pelo clima, uma vez que a agricultura de
subsistência é a forma dominante de sobrevivência.
A insegurança alimentar é
mais aguda nas províncias semi-áridas das regiões Sul e Central.
Estima-se em 550 mil o número
de pessoas que passam fome
neste ano nesses locais.
A remoção das barreiras humanas para que os animais circulem livremente dentro do parque transfronteiriço GKG e o remanejamento sustentável dessas
populações castigadas pela pobreza é o maior desafio das autoridades dos três países que vão
administrar conjuntamente a
área.
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