São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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Preservação à africana

MARILENE FELINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Abrir as fronteiras de três países para a criação de uma área em comum de preservação ambiental e ecoturismo, mas, ao mesmo tempo, vigiá-las contra a imigração ilegal de moçambicanos famintos rumo ao Zimbábue e à África do Sul. Esse é o desafio do projeto do Parque Transfronteiriço GKG (Transfrontier Park Gaza-Kruger-Gonarezhou), representativo do conflito entre pobreza e conservação do ambiente na África.
O parque, de 40 mil km2, está em fase de implantação e tem previsão de ser inaugurado em 2003. Vai unir os territórios de Coutada 16, na província de Gaza (sudoeste de Moçambique) e dos parques nacionais Kruger (nordeste da África do Sul) e Gonarezhou (sul do Zimbábue).
A fronteira entre Gaza e o Kruger National Park é exatamente um dos pontos pelos quais trabalhadores moçambicanos se aventuram para entrar ilegalmente na África do Sul em busca de emprego e melhores condições de vida. Muitos são devorados pelos leões na travessia. O parque Kruger já é uma reserva de caça controlada e com infra-estrutura de turismo de aventura na região.
Inspirado no único outro empreendimento do gênero na África -o Kgalagadi Transfrontier Park, criado em 2002 entre as fronteiras de Botsuana e África do Sul-, o GKG é mais um esforço de nações africanas na direção do desenvolvimento sustentável do continente.
O objetivo é administrar de forma equilibrada os recursos naturais das três regiões em questão, tornando acessível sua vasta flora e fauna selvagem para o turismo internacional, promovendo a preservação da biodiversidade, criando empregos, gerando renda e oportunidades para a população local, afetada por décadas de guerra civil.
Especialistas responsáveis pela instalação do GKG apostam no restabelecimento de rotas históricas de migração animal e outras funções do ecossistema interrompidas por cercas físicas e legislação incompatível. Nas três regiões há mais de 500 espécies de pássaros, 147 espécies de mamíferos, 116 espécies de répteis e mais de 2.000 espécies de plantas. O parque de Gonarezhou é rico em sítios arqueológicos, pinturas rupestres e fósseis de dinossauro.
O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, que trabalha no projeto de implantação do GKG, se mostra entusiasmado com a iniciativa, que vai abrir pela primeira vez para o público a Coutada 16, um dos tesouros de vida selvagem em Moçambique.
"As pessoas vão poder transitar com facilidade por três países dentro do parque e conhecer uma mistura de experiências culturais. Os próprios curandeiros locais servirão de guias turísticos explicando a ciência deles, contando histórias, apresentando a comida, a música e o artesanato local", Couto contou à Folha em junho, em Maputo (capital do país).
Mas é também na província de Gaza que o mais recente relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) aponta altas taxas de fome provocadas pela sequência de cheias e secas entre 2001/2002, além da redução drástica dos recursos naturais locais (madeira e caça) como resultado do uso intensivo nos últimos quatro anos.
A maioria da população moçambicana, cerca de 70%, vive abaixo da linha de pobreza absoluta. As condições de segurança alimentar em todo o país são fortemente influenciadas pelo clima, uma vez que a agricultura de subsistência é a forma dominante de sobrevivência.
A insegurança alimentar é mais aguda nas províncias semi-áridas das regiões Sul e Central. Estima-se em 550 mil o número de pessoas que passam fome neste ano nesses locais.
A remoção das barreiras humanas para que os animais circulem livremente dentro do parque transfronteiriço GKG e o remanejamento sustentável dessas populações castigadas pela pobreza é o maior desafio das autoridades dos três países que vão administrar conjuntamente a área.


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