São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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GLOBALIZAÇÃO

A cúpula da crise

GSFC/Nasa
Focos de incêndio flagrados por satélite em Bornéu, Indonésia



A depressão econômica da última década fez o ambiente despencar na lista das prioridades globais. Mas nem tudo são más notícias


RICARDO ARNT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após audaciosa virada editorial, a revista "The Economist" decidiu levar o ambientalismo a sério. Por que será? No suplemento publicado em julho "O que Devemos ao Futuro", um redator de espírito conciliador diagnostica: "A reunião do Rio, em 1992, tentou dar um passo maior que as pernas". Os economistas nunca perderam uma oportunidade de jogar gasolina na pira da insensatez ambientalista e impor a prioridade das leis do mercado sobre as leis da natureza. Mas, aparentemente, algumas teses ambientais parecem ter invadido a mentalidade contemporânea.
Sem dúvida, os prognósticos para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Johannesburgo, não são bons. Em 1992, a Conferência do Rio gerou uma Convenção sobre Mudanças Climáticas, uma Convenção sobre Diversidade Biológica e uma Agenda 21 que previa o aumento da ajuda econômica dos países ricos aos países pobres de 0,36% do PIB para 0,7% em dez anos. As ONGs (organizações não-governamentais) pipocavam, a Guerra Fria havia acabado e o Muro de Berlim, desabado.
Em 2002 há muito mais ONGs, mas a depressão econômica e a incerteza generalizada travam as grandes mudanças políticas. Imersos numa crise que já queimou US$ 4 trilhões nas bolsas de valores, os Estados Unidos não se comprometerão com os custos da reconversão industrial proposta pelo Protocolo de Kyoto para mitigar os efeitos das mudanças climáticas no planeta. Tampouco aceitarão programas vultosos para erradicar a pobreza, mudar os padrões de produção ou manejar recursos naturais -os temas de Johannesburgo.
Descartar a matriz energética baseada em combustíveis fósseis custa, por baixo, 1,3% do PIB por ano. Para os americanos, seriam US$ 117 bilhões por ano; para o Japão, 56 bilhões; para a Alemanha, 27 bilhões; e para o Reino Unido e a França, 18 bilhões cada. Ou seja, os olhos da cara. É provável que os Estados Unidos carreguem aliados como o Canadá, a Austrália ou a Rússia para a resistência conservadora. Mas o mundo não precisa esperar por eles.
Conferências ambientais mobilizam os governos, a mídia, as ONGs, acendem refletores, iluminam os problemas e aceleram a discussão sobre mudanças que todos já conhecem e que nem todos aceitam. Mas "The Economist" tem razão. Dez anos após os compromissos da Eco-92, o balanço é desanimador.

Decadência contínua
A ajuda aos países pobres caiu de 0,36% para 0,22%. Os indicadores ambientais de relatórios como o "GEO-3", do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o "Populações e Ecossistemas", do World Resources Institute, e o "Planeta Vivo", do Fundo Mundial para a Natureza, registram contínua decadência ambiental. A marcha para a falência de vários ecossistemas e recursos vitais avança resolutamente.
O último estudo da ONU para Johannesburgo, "Desafio Global, Oportunidades Globais", indica: 40% da população mundial enfrenta problemas com a água; 2,4% das florestas foram destruídas nos anos 90; 3 milhões de pessoas morrem por causa da poluição do ar anualmente; o nível dos mares está subindo e um crescente número de plantas e animais caminha para a extinção, sobretudo os primatas, parentes mais próximos da espécie humana.
Os dados mostram que a corrida entre degradação e desenvolvimento está sendo vencida pela primeira. Não há novidade nisso. Mas há gente que trabalha para ocultar esse fato.
Entretanto, também há indicadores econômicos não-catastróficos. Nos últimos 30 anos, segundo o "GEO-3", o número de pessoas subnutridas baixou de 1 bilhão para 800 milhões. A expectativa de vida aumentou de 60 para 65 anos. A taxa de mortalidade infantil caiu de 100 para 50 mortes em cada mil bebês e o número de crianças sem escola caiu de 400 milhões para 335 milhões. Pouco?
A China, que abriga 21% da população do planeta, cresce 10% ao ano há 20 anos, graças à globalização. Nunca houve maior redução de pobreza na história. Só na década de 90, 150 milhões de chineses saíram da penúria e ganharam acesso a confortos de classe média impensáveis para aqueles que estudaram o maoísmo nos anos 70.
O segundo país mais populoso do mundo, a Índia (que abriga 16% dos habitantes do planeta), também se abriu à globalização controlada em 1990 e vem crescendo 5,5% ao ano há cinco anos. O México, que sofre tanto quanto o Brasil com déficits e desequilíbrios fiscais, aderiu ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) em 1993 e virou a oitava economia do mundo, mandando a brasileira para o 11º lugar. A globalização pode ser devastadora, mas também traz progresso para países com interesses articulados por um mínimo de coesão interna.
É claro que o desenvolvimento econômico cria mais problemas ambientais, como atesta a imensa (e mórbida) nuvem de poluição fotografada pelos satélites sobre o leste da China. O avanço da urbanização, da motorização e da eletrificação agravará a tragédia dos recursos comuns no século 21. Se o desenvolvimento industrial chinês e indiano acelerar a queima de energias fósseis, seguindo a trilha aberta pelos países da Europa e pelos Estados Unidos, o clima do mundo se tornará cada vez mais imprevisível e destrutivo.
Todos sabem disso. O problema é que aliviar a penúria de um terço do planeta é muito difícil, trabalhoso, e requer muita perseverança. Gerar prosperidade sem impacto ambiental é ainda mais. Desde os anos 80, a China vem tentando ampliar as florestas naturais e plantadas do país para aumentar a absorção de carbono.
A discrepância entre objetivos econômicos e ambientais não é de fácil solução. Os economistas pensam em crescimento. Os ambientalistas, em preservação. Os primeiros ainda fogem da conversa sobre "internalizar" no custo de bens, produtos e serviços as "externalidades" socioambientais, como poluição, desemprego e desperdício.

Agenda 21
Os ambientalistas advogam reformas alheias à exequibilidade. A Agenda 21, por exemplo, programa de medidas de cada país para implantar o desenvolvimento sustentável, exigiu cinco anos de trabalho obstinado no Brasil. Mais de 40 mil pessoas participaram de discussões para identificar as prioridades estratégicas -uma das maiores consultas democráticas já feitas. A vanguarda ambientalista elencou centenas, milhares de propostas para os 21 objetivos da Agenda.
Entre elas figuram universalizar o saneamento básico nos próximos dez anos, implantar redes de metrô e trens rápidos nas grandes aglomerações, democratizar a Justiça, universalizar o ensino em tempo integral e reestruturar o Proálcool, desvinculado dos interesses do velho setor sucroalcooleiro. Com que recursos? Como? A Agenda parece uma árvore de Natal onde cada um pendurou um desejo. Como nem todos foram consultados, seria o caso de sugerir: salário mínimo de R$ 3.000, férias de dois meses, poligamia e luxo para todos.
Para desmanchar o impasse, em 1987 a Comissão da ONU sobre Desenvolvimento e Ambiente inventou, com estrondosa felicidade, o conceito duvidoso de "desenvolvimento sustentável" -o desenvolvimento sem sacrifício do futuro. Muitos acreditam que a expressão carrega uma contradição semântica. O ex-diretor da ONG Oxfam no Brasil, Tony Gross, comparava o desenvolvimento sustentável ao Abominável Homem das Neves: muitos acreditam na sua existência, alguns afirmam já tê-lo visto e outros dizem que é mito.
Como o aumento da destruição ambiental gera a busca redobrada por alternativas ecológicas, nos últimos 15 anos formidáveis forças sociais e econômicas entraram em ação para definir e implantar o desenvolvimento sustentável. Não há volta nesse movimento de reforma do capitalismo, cujas flexibilidade e capacidade de renovação têm sido provadas pela história, diferentemente dos socialismos ditos marxistas.
A Alemanha social-democrata e verde é o centro irradiador dessa experiência, exportando influência análoga à da antiga União Soviética sobre os partidos socialistas, com a diferença de que a democracia e a convivência com os interesses contrários permitem corrigir excessos, graduar ou abandonar propostas.
É esse movimento ascendente que autoriza o chanceler alemão, Joschka Fischer, a prognosticar, no livro "Por uma Nova Concepção de Sociedade": "A sociedade de crescimento quantitativo será, como tal, colocada de lado, e a busca de alternativas qualitativas para um desenvolvimento sustentável aumentará".
A vanguarda do capitalismo já trabalha para mudar o desenvolvimento. O Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e a Harvard Business School já sabem. "The Economist" demorou, chiou, resmungou, mas se conformou. As maiores e melhores empresas já sabem, perfeitamente.
"Quem quiser se posicionar da melhor forma nesses novos mercados, apresentando alternativas de sistemas, tecnologias, produtos e serviços, será o primeiro a fazer negócios", escreve Fischer. Naturalmente, as piores e as mais reacionárias empresas ainda trabalham contra.

Do fóssil ao solar
Com ou sem o Protocolo de Kyoto, aquilo que o sociólogo Hermann Scheer chama de "transição da economia fóssil para a economia solar" -a economia baseada nas energias da luz e do calor do sol, da biomassa, da força hidráulica, das ondas e dos ventos- já está em curso. Tanto no Brasil quanto na Alemanha, onde é o tema decisivo das eleições do próximo dia 22 de setembro.
A adoção de impostos sobre o transporte privado e a energia, para dar visibilidade aos custos da poluição, está cindindo a sociedade alemã. Qualquer estratégia que envolva crescimento econômico negativo ou mudança de padrão de consumo corre o risco de perder o apoio da maioria e fracassar.
Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia já modificaram sua filosofia reguladora, adotando impostos sobre energias fósseis. França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Itália e Suíça estudam a adoção. A Shell e a British Petroleum já se distanciaram das posições do cartel petrolífero, defendendo os "mecanismos de desenvolvimento limpo" propostos pelo Protocolo de Kyoto. Um estudo da Shell de 1994 ("Energy for Developments") prevê que 50% do abastecimento de energia mundial será feito, em 2060, por fontes renováveis. Mas o setor energético dos Estados Unidos -os amigos do presidente George W. Bush- permanece hostil.
A criação de um mercado comercial de emissões, de licenças e de projetos de "sequestro de carbono" disseminará as políticas sustentáveis de energia globalmente. Há uma virada fiscal ambiental no horizonte das sociedades industrializadas para eliminar os subsídios às energias fósseis, precificar a poluição e ecologizar a economia.
Pode demorar, mas já está em marcha.


Ricardo Arnt é editor da revista "Exame"



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