São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2001

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AMBIENTE
Peshawar, no noroeste paquistanês, mescla moralidade do Taleban a hábitos ocidentais

Fronteira abriga cidade "sem lei"

KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL A PESHAWAR

Peshawar, capital da Província Noroeste do Paquistão, é uma cidade onde convivem a mais radical moralidade islâmica que deu origem ao Taleban e uma permissividade clandestina "ocidental" que oferece bebidas, sexo, drogas e armas a quem pode pagar.
Essa atmosfera de fervorosa religiosidade com ares de Dogde City (uma versão contemporânea na Ásia central da cidade sem lei do faroeste americano) criou o ambiente perfeito para a ação de Osama bin Laden e de seus seguidores na organização Al Qaeda quando querem fazer contato com o mundo fora do Afeganistão. É fácil para um fundamentalista terrorista ser confundido com um muçulmano inofensivo.
A porta de entrada para o mundo ocidental são os cibercafés para todos os gostos, desde os rigorosamente caretas até os que têm por especialidade oferecer pornografia, mulheres, bebidas, drogas e até armas. Nesses locais, seguidores de Bin Laden usam a internet para enviar e-mail a companheiros nos EUA e na Europa.
Perto da fronteira com o Afeganistão, Peshawar é uma cidade que sempre contou com a presença de viajantes. Seu nome significa "cidade na fronteira", segundo alguns livros, e "cidade dos mercadores", de acordo com outros.
Além de comerciantes de todos os tempos, personagens históricos, como o conquistador Alexandre, o Grande, e os exploradores Marco Polo e Lawrence da Arábia já passaram por aqui.

Mercado negro
No sábado à tarde, num cibercafé em uma viela do mercado de Qissa Khawani, centro de Peshawar, um homem que aparenta pouco mais de 40 anos se aproxima do repórter da Folha e oferece: "Fufu sex, má friend. Only 200 dollars". Demora-se um pouco a entender que ele quer dizer "sexo completo" num inglês ruim e mais tempo ainda para saber o que significa "sexo completo" exatamente.
O dublê de motorista e tradutor Allam Shar, 23, com aparência de 30 e com o tradicional bigode paquistanês, não gosta do assunto, mas explica, honrando os US$ 100 diários por seus serviços: "Geralmente, o homem e a mulher muçulmana têm relação sexual no modo mais tradicional. Há liberdade, do jeito ocidental".
Allam agradece a oferta, mas o homem, que se identifica apenas como Tahir, insiste. Diz que é muito seguro, porque acontece numa "casa de gente conhecida e de confiança". Relações sexuais fora do casamento no Paquistão são grave ofensa à religiosidade islâmica. Tribos mais tradicionais do interior do país chegam a matar moças não-virgens. Estrangeiros podem ser presos.
Allam repete que não estamos interessados em sexo, mas em bebida porque não podemos comprá-la no hotel, o que é mentira. [No Pearl Continental, há no quinto andar um bar com carpete vermelho cheirando a mofo com ingleses que bebem cerveja e gim. Na entrada, lê-se: "apenas para estrangeiros não-muçulmanos".
Tahir, o vendedor de mercadorias proibidas do cibercafé, pede que o sigamos até o local onde poderemos comprar cerveja. Em cinco minutos de caminhada por uma ruela suja, com mulheres cobertas dos pés à cabeça mendigando algumas rúpias paquistanesas, provavelmente viúvas ou mulheres que perderam a família e têm de viver sozinhas, chegamos ao destino.
É uma espécie de cortiço, com pintura gasta e portas danificadas e sem maçanetas. Allam não quer entrar. Acha perigoso e dá sinais de arrependimento por ter aceitado o serviço de mostrar como funciona a cidade.
Diante da promessa de que a conversa será curta, Allam acompanha a reportagem. Tahir pega a escada para o porão. Lá dentro, dezenas de caixas de cerveja Murree, feita no Paquistão e que só devem ser vendidas a estrangeiros e sob autorização do governo, e poucas caixas de Budweiser. Quando descobre que seu cliente é do Brasil, fala de futebol: "Ronaldo, Maradona...". Explico que Diego Maradona é um craque que nasceu na Argentina.
O comerciante quer saber se queremos cocaína: "US$ 50 o pacote pequeno", diz. Diante da negativa, passa a falar da cerveja. A Murree custa 200 rúpias a garrafa de 500 ml (US$ 3). A Budweiser, de 300 ml, 300 rúpias (US$ 5).

Guerrilheiro
Mais descontraído, Tahir diz ser um ex-mujahedini (guerrilheiro) que lutou para expulsar os soviéticos do Afeganistão no final dos anos 80, mas deixou o país porque os combates continuaram entre as tribos afegãs. O tradutor Allam diz que talvez seja verdade.
"Não havia futuro lá. Morava em Candahar (sul do Afeganistão) e vim para Peshawar com minha mulher e três filhos em 1991", relata Tahir. Segundo ele, se os EUA atacarem o Afeganistão, haverá mais seguidores de Bin Laden e do Taleban, aumentando a possibilidade de novos ataques terroristas. "Os guerreiros de Bin Laden não têm medo de nada. Na guerra contra os russos, estavam sempre na linha de frente, dispostos às missões mais arriscadas. Vi muitos caminharem para a morte sem pensar", lembra Tahir.
Segundo o relato dos parentes de Tahir, há em Cabul um clima de compasso de espera. Os que não suportam aguardar para conferir como será um eventual bombardeio abandonam a cidade rumo ao campo e a outros países.
Não há estatísticas confiáveis, mas Peshawar já deve ter ultrapassado os 2 milhões de habitantes devido ao fluxo de refugiados do Afeganistão -mais de 50% da população da cidade é de origem afegã ou de quem deixou o país por escaramuças entre as tribos ou depois de o Taleban ter tomado o poder em 1996. Estima-se que, dos 20 milhões de afegãos, haja cerca de 3 milhões em países vizinhos, como Irã e Paquistão.
Ao ser indagado se vende armas, o ex-mujahid fica desconfiado. Diz que não é do ramo. Pergunta o que um jornalista quer com uma arma e explica que a venda dessa mercadoria "é exclusiva do Exército". Apressado, quer finalizar sua venda.

Camelódromo
Allam demonstra alívio quando sai do "bar" de Tahir. De volta à rua principal, a melhor comparação brasileira com as lojas de Peshawar são as barracas de camelô comuns nos centros urbanos.
À primeira vista, há uma mistura caótica e agradável de mercadorias coloridas e cheiros de perfumes e comida. Lojas de bijuteria e de frutas formam um belo mosaico de cores. Panelões com molhos picantes e enormes frigideiras com óleo escuro de tanto uso preparam toda a sorte de petiscos. A falta de higiene, porém, desaconselha beber sucos e comer coxas de galinha em molho de iogurte e chilli verde.
Os jornalistas estrangeiros atraem uma pequena multidão quando entrevistam. Uma equipe de TV do Japão está cercada por mais de 50 pessoas, entre elas o comerciante Haji Nawaz, que diz: "Falo bem inglês e gosto de dar entrevista. Quer conversar?".
Com dentes sem cuidado, rosto bem queimado e barba longa, Haji, 30, aparenta ter 50 anos. A cordialidade também está presente entre os árabes. São hospitaleiros e humildemente atenciosos.
"Os muçulmanos não são monstros. Agem sempre por convicção e temor a Allah", diz Haji, que deixa claro aos estrangeiros que têm simpatia pelo Taleban. Seu jeito educado de falar, sempre com voz baixa, lembra as poucas e repetidas imagens que aparecem na mídia internacional de Bin Laden, o suspeito número um dos atentados contra os EUA.
Haji discorda da cooperação do governo do Paquistão com Washington e acredita que os americanos terão dificuldade para derrotar Bin Laden. "Ele tem seguidores no mundo todo. Não lutam por dinheiro, mas por acreditar em sua causa. Se matarem Bin Laden, outros tomarão seu lugar."
Apesar da simpatia pelo Taleban, Haji discorda dos ataques de 11 de setembro. Repete um argumento comum no Paquistão: não há provas de que Bin Laden ou o Taleban estejam por trás dos ataques, mas suspeitas.
Ironicamente, Peshawar, com seu "pecaminoso lado ocidental", também funciona como uma capital informal do Taleban, grupo que nasceu em seminários islâmicos radicais exatamente na região no início dos ano 90. Nas ruas, é fácil escutar uma palavra de defesa do modo como tratam as mulheres. "Elas ficam mais felizes se permanecerem em casa."

Oração da tarde
Sem necessidade de tradução, Allam pede licença para ir à mesquita do outro lado da rua e fazer a oração da tarde (Salat-zohar).
Haji diz que o bom muçulmano deve rezar cinco vezes por dia, entre cinco a dez minutos de cada vez. Ele esclarece dúvidas básicas de um novato no mundo árabe.
Cultivar uma longa barba é recomendável porque todos os profetas, "inclusive o da sua religião, Jesus Cristo", usavam barba.
As longas Qamees (camisas, em língua pashtu) "servem para esconder bem o corpo, em sinal de respeito". O idioma pashtu, aliás, é falado pela maioria dos habitantes da Província do Noroeste do Paquistão. Nas outras três províncias, a maioria fala urdu. Em todo o Paquistão se fala inglês. O pashtu, língua das ruas de Peshawar, é um dos idiomas do Afeganistão.

Hospitalidade
Na hora de se despedir, Haji confirma a hospitalidade paquistanesa e convida o repórter para um chá de jasmin, pelo qual faz questão de pagar 20 rúpias.
Causa alívio ver que a água com uma tonalidade terra ferveu durante bom tempo. Antes de partir, Haji afirma que o clima já está muito tenso na cidade e que "é responsabilidade da mídia internacional ajudar a impedir a guerra". De fato, o governo aumentou a presença militar em Peshawar. Até no hotel dos jornalistas estrangeiros há um soldado em cada andar. As visitas aos campos de refugiados e as viagens são permitidas apenas com autorização do Ministério do Interior.
Há barreiras militares nos cerca de 70 km que separam Peshawar da fronteira afegã. No final de semana, houve movimentação de tanques e veículos blindados com soldados rumo à fronteira.


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