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AMBIENTE
Peshawar, no noroeste paquistanês, mescla moralidade do Taleban a hábitos ocidentais
Fronteira abriga cidade "sem lei"
KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL A PESHAWAR
Peshawar, capital da Província
Noroeste do Paquistão, é uma cidade onde convivem a mais radical moralidade islâmica que deu
origem ao Taleban e uma permissividade clandestina "ocidental"
que oferece bebidas, sexo, drogas
e armas a quem pode pagar.
Essa atmosfera de fervorosa religiosidade com ares de Dogde
City (uma versão contemporânea
na Ásia central da cidade sem lei
do faroeste americano) criou o
ambiente perfeito para a ação de
Osama bin Laden e de seus seguidores na organização Al Qaeda
quando querem fazer contato
com o mundo fora do Afeganistão. É fácil para um fundamentalista terrorista ser confundido
com um muçulmano inofensivo.
A porta de entrada para o mundo ocidental são os cibercafés para todos os gostos, desde os rigorosamente caretas até os que têm
por especialidade oferecer pornografia, mulheres, bebidas, drogas
e até armas. Nesses locais, seguidores de Bin Laden usam a internet para enviar e-mail a companheiros nos EUA e na Europa.
Perto da fronteira com o Afeganistão, Peshawar é uma cidade
que sempre contou com a presença de viajantes. Seu nome significa "cidade na fronteira", segundo
alguns livros, e "cidade dos mercadores", de acordo com outros.
Além de comerciantes de todos
os tempos, personagens históricos, como o conquistador Alexandre, o Grande, e os exploradores Marco Polo e Lawrence da
Arábia já passaram por aqui.
Mercado negro
No sábado à tarde, num cibercafé em uma viela do mercado de
Qissa Khawani, centro de Peshawar, um homem que aparenta
pouco mais de 40 anos se aproxima do repórter da Folha e oferece: "Fufu sex, má friend. Only 200
dollars". Demora-se um pouco a
entender que ele quer dizer "sexo
completo" num inglês ruim e
mais tempo ainda para saber o
que significa "sexo completo"
exatamente.
O dublê de motorista e tradutor
Allam Shar, 23, com aparência de
30 e com o tradicional bigode paquistanês, não gosta do assunto,
mas explica, honrando os US$ 100
diários por seus serviços: "Geralmente, o homem e a mulher muçulmana têm relação sexual no
modo mais tradicional. Há liberdade, do jeito ocidental".
Allam agradece a oferta, mas o
homem, que se identifica apenas
como Tahir, insiste. Diz que é
muito seguro, porque acontece
numa "casa de gente conhecida e
de confiança". Relações sexuais
fora do casamento no Paquistão
são grave ofensa à religiosidade
islâmica. Tribos mais tradicionais
do interior do país chegam a matar moças não-virgens. Estrangeiros podem ser presos.
Allam repete que não estamos
interessados em sexo, mas em bebida porque não podemos comprá-la no hotel, o que é mentira.
[No Pearl Continental, há no
quinto andar um bar com carpete
vermelho cheirando a mofo com
ingleses que bebem cerveja e gim.
Na entrada, lê-se: "apenas para
estrangeiros não-muçulmanos".
Tahir, o vendedor de mercadorias proibidas do cibercafé, pede
que o sigamos até o local onde poderemos comprar cerveja. Em
cinco minutos de caminhada por
uma ruela suja, com mulheres cobertas dos pés à cabeça mendigando algumas rúpias paquistanesas, provavelmente viúvas ou
mulheres que perderam a família
e têm de viver sozinhas, chegamos ao destino.
É uma espécie de cortiço, com
pintura gasta e portas danificadas
e sem maçanetas. Allam não quer
entrar. Acha perigoso e dá sinais
de arrependimento por ter aceitado o serviço de mostrar como
funciona a cidade.
Diante da promessa de que a
conversa será curta, Allam acompanha a reportagem. Tahir pega a
escada para o porão. Lá dentro,
dezenas de caixas de cerveja Murree, feita no Paquistão e que só devem ser vendidas a estrangeiros e
sob autorização do governo, e
poucas caixas de Budweiser.
Quando descobre que seu cliente
é do Brasil, fala de futebol: "Ronaldo, Maradona...". Explico que
Diego Maradona é um craque que
nasceu na Argentina.
O comerciante quer saber se
queremos cocaína: "US$ 50 o pacote pequeno", diz. Diante da negativa, passa a falar da cerveja. A
Murree custa 200 rúpias a garrafa
de 500 ml (US$ 3). A Budweiser,
de 300 ml, 300 rúpias (US$ 5).
Guerrilheiro
Mais descontraído, Tahir diz ser
um ex-mujahedini (guerrilheiro)
que lutou para expulsar os soviéticos do Afeganistão no final dos
anos 80, mas deixou o país porque
os combates continuaram entre
as tribos afegãs. O tradutor Allam
diz que talvez seja verdade.
"Não havia futuro lá. Morava
em Candahar (sul do Afeganistão) e vim para Peshawar com minha mulher e três filhos em 1991",
relata Tahir. Segundo ele, se os
EUA atacarem o Afeganistão, haverá mais seguidores de Bin Laden e do Taleban, aumentando a
possibilidade de novos ataques
terroristas. "Os guerreiros de Bin
Laden não têm medo de nada. Na
guerra contra os russos, estavam
sempre na linha de frente, dispostos às missões mais arriscadas. Vi
muitos caminharem para a morte
sem pensar", lembra Tahir.
Segundo o relato dos parentes
de Tahir, há em Cabul um clima
de compasso de espera. Os que
não suportam aguardar para conferir como será um eventual bombardeio abandonam a cidade rumo ao campo e a outros países.
Não há estatísticas confiáveis,
mas Peshawar já deve ter ultrapassado os 2 milhões de habitantes devido ao fluxo de refugiados
do Afeganistão -mais de 50% da
população da cidade é de origem
afegã ou de quem deixou o país
por escaramuças entre as tribos
ou depois de o Taleban ter tomado o poder em 1996. Estima-se
que, dos 20 milhões de afegãos,
haja cerca de 3 milhões em países
vizinhos, como Irã e Paquistão.
Ao ser indagado se vende armas, o ex-mujahid fica desconfiado. Diz que não é do ramo. Pergunta o que um jornalista quer
com uma arma e explica que a
venda dessa mercadoria "é exclusiva do Exército". Apressado,
quer finalizar sua venda.
Camelódromo
Allam demonstra alívio quando
sai do "bar" de Tahir. De volta à
rua principal, a melhor comparação brasileira com as lojas de Peshawar são as barracas de camelô
comuns nos centros urbanos.
À primeira vista, há uma mistura caótica e agradável de mercadorias coloridas e cheiros de perfumes e comida. Lojas de bijuteria
e de frutas formam um belo mosaico de cores. Panelões com molhos picantes e enormes frigideiras com óleo escuro de tanto uso
preparam toda a sorte de petiscos.
A falta de higiene, porém, desaconselha beber sucos e comer coxas de galinha em molho de iogurte e chilli verde.
Os jornalistas estrangeiros
atraem uma pequena multidão
quando entrevistam. Uma equipe
de TV do Japão está cercada por
mais de 50 pessoas, entre elas o
comerciante Haji Nawaz, que diz:
"Falo bem inglês e gosto de dar
entrevista. Quer conversar?".
Com dentes sem cuidado, rosto
bem queimado e barba longa, Haji, 30, aparenta ter 50 anos. A cordialidade também está presente
entre os árabes. São hospitaleiros
e humildemente atenciosos.
"Os muçulmanos não são
monstros. Agem sempre por convicção e temor a Allah", diz Haji,
que deixa claro aos estrangeiros
que têm simpatia pelo Taleban.
Seu jeito educado de falar, sempre
com voz baixa, lembra as poucas e
repetidas imagens que aparecem
na mídia internacional de Bin Laden, o suspeito número um dos
atentados contra os EUA.
Haji discorda da cooperação do
governo do Paquistão com Washington e acredita que os americanos terão dificuldade para derrotar Bin Laden. "Ele tem seguidores no mundo todo. Não lutam
por dinheiro, mas por acreditar
em sua causa. Se matarem Bin Laden, outros tomarão seu lugar."
Apesar da simpatia pelo Taleban, Haji discorda dos ataques de
11 de setembro. Repete um argumento comum no Paquistão: não
há provas de que Bin Laden ou o
Taleban estejam por trás dos ataques, mas suspeitas.
Ironicamente, Peshawar, com
seu "pecaminoso lado ocidental",
também funciona como uma capital informal do Taleban, grupo
que nasceu em seminários islâmicos radicais exatamente na região
no início dos ano 90. Nas ruas, é
fácil escutar uma palavra de defesa do modo como tratam as mulheres. "Elas ficam mais felizes se
permanecerem em casa."
Oração da tarde
Sem necessidade de tradução,
Allam pede licença para ir à mesquita do outro lado da rua e fazer
a oração da tarde (Salat-zohar).
Haji diz que o bom muçulmano
deve rezar cinco vezes por dia, entre cinco a dez minutos de cada
vez. Ele esclarece dúvidas básicas
de um novato no mundo árabe.
Cultivar uma longa barba é recomendável porque todos os profetas, "inclusive o da sua religião,
Jesus Cristo", usavam barba.
As longas Qamees (camisas, em
língua pashtu) "servem para esconder bem o corpo, em sinal de
respeito". O idioma pashtu, aliás,
é falado pela maioria dos habitantes da Província do Noroeste do
Paquistão. Nas outras três províncias, a maioria fala urdu. Em todo
o Paquistão se fala inglês. O pashtu, língua das ruas de Peshawar, é
um dos idiomas do Afeganistão.
Hospitalidade
Na hora de se despedir, Haji
confirma a hospitalidade paquistanesa e convida o repórter para
um chá de jasmin, pelo qual faz
questão de pagar 20 rúpias.
Causa alívio ver que a água com
uma tonalidade terra ferveu durante bom tempo. Antes de partir,
Haji afirma que o clima já está
muito tenso na cidade e que "é
responsabilidade da mídia internacional ajudar a impedir a guerra". De fato, o governo aumentou
a presença militar em Peshawar.
Até no hotel dos jornalistas estrangeiros há um soldado em cada andar. As visitas aos campos
de refugiados e as viagens são permitidas apenas com autorização
do Ministério do Interior.
Há barreiras militares nos cerca
de 70 km que separam Peshawar
da fronteira afegã. No final de semana, houve movimentação de
tanques e veículos blindados com
soldados rumo à fronteira.
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