São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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Crônica

História paulistana

O que mais me chamou a atenção foi um homem com água até o pescoço carregando uma trouxa de roupa na cabeça, que ele protegia com um guarda-chuva cinza brilhante

FABRÍCIO CORSALETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Levantei de madrugada com sede e fui até a cozinha beber água. O piso estava molhado, escorreguei e caí. Bati a cabeça na quina do batente da porta.
Botei a mão onde doía e examinei os dedos: nada de sangue. Já de pé, acendi a luz e olhei pro chão -estava completamente inundado. Era a terceira vez que isso acontecia em duas semanas.
O que eu poderia fazer além de esperar até o dia seguinte e ligar pro encanador? Tomei um gole de suco de laranja e voltei pra cama.
Mas não consegui dormir. Fiquei fritando na cama mais de uma hora. Enquanto o sono não chegava, fui até a sala e liguei a tevê. Num canal de notícias, uma reportagem sobre as enchentes paulistanas dos últimos anos.
Dezenas de mortos, a água com mais coliformes fecais que a do próprio Tietê, o papo furado dos governantes etc.
O que mais me chamou a atenção, no entanto, foi um homem com água até o pescoço carregando uma trouxa -vermelha- de roupa na cabeça, que ele protegia com um guarda-chuva cinza brilhante.
Tudo na imagem parecia fora de lugar e comovia: um homem encharcado e ainda assim com um guarda-chuva, a trouxa de roupa seca no meio de um rio de merda, a harmonia incrivelmente elegante entre as cores da trouxa e do guarda-chuva contrastando com a indefinição das cores da paisagem.
Aquele troço mexeu comigo.
Disse pra mim mesmo: está na hora de você escrever um poema social ou pelo menos dar um jeito dessa paisagem entrar na sua poesia; não seja um crápula cínico e indiferente! Peguei papel e caneta e rabisquei algumas páginas a respeito de uma tempestade criminosa que engolia a cidade. Quem soubesse nadar devia se considerar uma pessoa de sorte -e coisas do tipo.
Depois fui pro trabalho, cansado, mas no fundo me sentindo um Faulkner -tinha finalmente dado o salto.
O poema ainda não estava pronto, porém estava no caminho certo e, se eu não estava enganado, teria ecos do Palmeiras Selvagens, que eu tinha lido há pouco tempo, impressionadíssimo com a descrição da Grande Cheia do Mississipi.
Passei um dia feliz. Nem a chuva que tomei na volta pra casa estragou meu bom humor. De banho tomado, abri o laptop e passei o rascunho a limpo.
Mexe daqui, mexe dali, e o que eu temia se deu: a enchente cósmica paulistana acabou caindo fora do texto, restando no seu lugar a minha miserável aguinha pessoal.
Não sei se esta é a história de um poema que nunca existiu ou do poema que escrevi e copio abaixo. Sei que tanto um quanto outro "foram concebidos" em São Paulo, a cidade onde fui obrigado a me tornar adulto e um pouco menos ingênuo, pelo menos em parte. E onde tudo é terrivelmente complexo e difícil, e na melhor das hipóteses você pode fazer um esforço pra expressar o seu ponto de vista, torcendo pra que amanhã haja ônibus ou metrô pra te levar pro trabalho:

"Despedida"
o chão da cozinha
está de novo inundado
vou chamar o encanador
vou chamar o encanador
reciclar o lixo
e votar no candidato
menos escroto
farei o possível
pra não arrotar na mesa
nem ter um ataque de riso
na delegacia
de agora em diante
a civilização pode contar comigo
--
mas como despedida
só por um momento
quero pensar que sou um pato
um pato gordo
e libidinoso
à beira da lagoa
correndo atrás de uma pata


FABRÍCIO CORSALETTI é poeta e ficcionista. É autor dos livros "Movediço" (ed. Labortexto), "O Sobrevivente" (Hedra) -incluídos na antologia "Estudos para o Seu Corpo" (Companhia das Letras)- "Zoo" (Hedra) "King Kong e Cervejas" (Companhia das Letras) e "Golpe de Ar" (ed. 34), entre outros. Foi editor de poesia na revista "Ácaro"


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