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Crônica
História paulistana
O que mais me chamou a atenção foi um homem com água até o pescoço carregando uma trouxa de roupa na cabeça, que ele protegia com um guarda-chuva cinza brilhante
FABRÍCIO CORSALETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Levantei de madrugada com
sede e fui até a cozinha beber
água. O piso estava molhado,
escorreguei e caí. Bati a cabeça
na quina do batente da porta.
Botei a mão onde doía e examinei os dedos: nada de sangue.
Já de pé, acendi a luz e olhei
pro chão -estava completamente inundado. Era a terceira
vez que isso acontecia em duas semanas.
O que eu poderia fazer além
de esperar até o dia seguinte e
ligar pro encanador? Tomei um
gole de suco de laranja e voltei pra cama.
Mas não consegui dormir. Fiquei fritando na cama mais de
uma hora. Enquanto o sono
não chegava, fui até a sala e liguei a tevê. Num canal de notícias, uma reportagem sobre as
enchentes paulistanas dos últimos anos.
Dezenas de mortos, a água
com mais coliformes fecais que
a do próprio Tietê, o papo furado dos governantes etc.
O que mais me chamou a
atenção, no entanto, foi um homem com água até o pescoço
carregando uma trouxa -vermelha- de roupa na cabeça,
que ele protegia com um guarda-chuva cinza brilhante.
Tudo na imagem parecia fora
de lugar e comovia: um homem
encharcado e ainda assim com
um guarda-chuva, a trouxa de
roupa seca no meio de um rio
de merda, a harmonia incrivelmente elegante entre as cores
da trouxa e do guarda-chuva
contrastando com a indefinição das cores da paisagem.
Aquele troço mexeu comigo.
Disse pra mim mesmo: está na
hora de você escrever um poema social ou pelo menos dar
um jeito dessa paisagem entrar
na sua poesia; não seja um crápula cínico e indiferente!
Peguei papel e caneta e rabisquei algumas páginas a respeito
de uma tempestade criminosa
que engolia a cidade. Quem
soubesse nadar devia se considerar uma pessoa de sorte -e
coisas do tipo.
Depois fui pro trabalho, cansado, mas no fundo me sentindo um Faulkner -tinha finalmente dado o salto.
O poema ainda não estava
pronto, porém estava no caminho certo e, se eu não estava enganado, teria ecos do Palmeiras
Selvagens, que eu tinha lido há
pouco tempo, impressionadíssimo com a descrição da Grande Cheia do Mississipi.
Passei um dia feliz. Nem a
chuva que tomei na volta pra
casa estragou meu bom humor.
De banho tomado, abri o laptop e passei o rascunho a limpo.
Mexe daqui, mexe dali, e o que
eu temia se deu: a enchente
cósmica paulistana acabou
caindo fora do texto, restando
no seu lugar a minha miserável
aguinha pessoal.
Não sei se esta é a história de
um poema que nunca existiu
ou do poema que escrevi e copio abaixo. Sei que tanto um
quanto outro "foram concebidos" em São Paulo, a cidade onde fui obrigado a me tornar
adulto e um pouco menos ingênuo, pelo menos em parte. E
onde tudo é terrivelmente
complexo e difícil, e na melhor
das hipóteses você pode fazer
um esforço pra expressar o seu
ponto de vista, torcendo pra
que amanhã haja ônibus ou
metrô pra te levar pro trabalho:
"Despedida"
o chão da cozinha
está de novo inundado
vou chamar o encanador
vou chamar o encanador
reciclar o lixo
e votar no candidato
menos escroto
farei o possível
pra não arrotar na mesa
nem ter um ataque de riso
na delegacia
de agora em diante
a civilização pode contar comigo
--
mas como despedida
só por um momento
quero pensar que sou um pato
um pato gordo
e libidinoso
à beira da lagoa
correndo atrás de uma pata
FABRÍCIO CORSALETTI é poeta e ficcionista. É
autor dos livros "Movediço" (ed. Labortexto),
"O Sobrevivente" (Hedra) -incluídos na antologia "Estudos para o Seu Corpo" (Companhia das
Letras)- "Zoo" (Hedra) "King Kong e Cervejas"
(Companhia das Letras) e "Golpe de Ar" (ed. 34),
entre outros. Foi editor de poesia na revista
"Ácaro"
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