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Pega essa bola e vai estudar
MÁRVIO DOS ANJOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Ópio do povo. Jogo estúpido.
Moda inglesa. Esporte de alienados. Aparato da ditadura. Os
intelectuais não economizaram quando viram o futebol como nocivo e emburrecedor.
Hoje, porém, são poucos os
artistas, cientistas sociais e estudiosos que tratam o esporte
como tema a ignorar. Virou
uma simples questão de gosto.
Assim é com o crítico e ensaísta Antonio Candido, 87, um
dos maiores intelectuais do
país. Seu laço com a bola surge,
no máximo, em época de Copa.
"Não me interessei por futebol, pelo mesmo motivo que
muitos não se interessam pelas
campanhas de Napoleão ou
Aníbal. A vida tem dessas coisas, as pessoas não se interessam pelos mesmos assuntos."
"Mineiro nascido no Rio", ele
o diz, Candido tem simpatia de
fundo nostálgico pelo Botafogo, em cuja vizinhança morou,
e só. Sinceramente, reafirma
não entender nada de futebol.
"Realmente, não sei nem como se bate um escanteio", diz,
respondendo com humor a José Lins do Rego (1901-57).
Humor também tem Manolo
Florentino, 48, historiador da
UFRJ e botafoguense, sobre a
frase de Lins do Rego. "Fica
ainda mais difícil quando é cobrado pela esquerda. Não conheço nada que torne a idéia de
Brasil tão tangível quanto os jogos da seleção na Copa. Não
tem que haver preconceito."
Para o historiador, esse traço
característico muda até o conceito de herói pátrio. "Herói é
aquele que é bom para as pessoas. E estão mais próximos
disso Garrincha, Pelé e Rivellino do que um Tiradentes ou um
dom Pedro 1º, que fundou um
país e morreu fora dele."
O preconceito ideológico da
esquerda guerrilheira em 1970
foi relatado pelo deputado federal, jornalista e colunista da
Folha Fernando Gabeira (PV-RJ) em seu livro "O Que É Isso,
Companheiro?". Mas bastou o
4 a 1 sobre a Tchecoslováquia
para a ideologia canhota cair.
"Ninguém agüentava, é muito difícil. Claro que havia um
trabalho de marketing político
para associar a ditadura e a seleção, o Médici fazendo embaixadas. Mas a seleção é o povo,
os generais que eram o governo", diz Gabeira, ex-meia-direita juvenil do Tupi de Juiz de
Fora e flamenguista praticante.
Hoje reprova o menosprezo
ideológico do futebol. "A esquerda se concentrou muito
mais na luta de classe, no marxismo, ao passo que os que não
eram de esquerda buscaram a
antropologia, uma explicação
mais cultural e se abriram para
elementos considerados secundários. Não tenho dúvidas
de que a esquerda errou."
A preocupação sociológica
tardia com o futebol nasce, segundo Ferreira Gullar, 75, de
uma causa simples. "A verdade
é que o pessoal gosta mesmo é
de jogar. O que não quer dizer
que todos tenham que gostar
de futebol", diz o poeta e colunista da Folha, que refuta a
máxima de Lins do Rego. "É generalização demagógica."
Ajuda também o fato de muitos terem sido criados num
ambiente em que ouvir e jogar
futebol eram a maior diversão.
Na sua São Luís natal, aos
dez, Gullar tabelava com um
garoto de oito que seria conhecido como Canhoteiro pelos
são-paulinos -o "Garrincha da
esquerda" nos anos 50 e 60.
"Jogávamos na frente do
Mercado Novo, em São Luís.
Não fosse o futebol, talvez tivesse vendido mingau como o
pai dele, seu Cecílio, que não
queria vê-lo metido com bola."
Vascaíno, Gullar chegou a ser
juvenil do glorioso Sampaio
Corrêa (MA). "Mas eu não tinha esse talento. A sociedade é
um mutirão de talentos. Um
nasce jogador, o outro, poeta."
Marcos Vinícios Vilaça, 66,
não escapou da febre em Limoeiro (PE), mas a vocação era
o poder. Foi diretor de futebol
do Náutico e hoje é ministro do
TCU e presidente da Academia
Brasileira de Letras, onde o futebol gera discussões imortais.
"Quando eu cheguei à ABL, a
primeira coisa que o [historiador, advogado, jornalista, político e acadêmico] Barbosa Lima Sobrinho me perguntava
era sobre o Náutico", diz.
Para alguns intelectuais, o
que falta às vezes é tempo. "Minhas atribuições muitas vezes
não me permitem acompanhar
como gostaria", diz Roberto
Minczuk, maestro titular da
Orquestra Sinfônica Brasileira,
que regerá 18 orquestras pelo
mundo até o fim do ano. Cedo
enfrentou o dilema do tempo
entre o lazer e o trabalho.
"Aos 14 anos, ganhei uma
bolsa de estudos nos EUA e, no
primeiro verão, acabei jogando
mais bola do que estudando
música. Tinha que parar."
Mas não ignorar. No primeiro concerto com a Sinfônica de
São Paulo após o penta, incentivou os músicos a tocar a
"Quinta Sinfonia" de Tchaikovski com adereços verde-amarelos, na Sala São Paulo.
Poucos podem ser como
Eduardo Góes, 40, doutor pela
Universidade de Indiana
(EUA) e diretor do Museu de
Arqueologia e Etnologia da
USP. Nas pesquisas em sítios
da Amazônia, a bola está presente. "Em trabalhos de campo, sempre jogamos com o pessoal da região." Às vezes, porém, os interesses se chocam.
Há oito anos, às margens do
rio Negro, um campo estava sobre um sítio arqueológico.
"A cerâmica brotava do chão,
mas eu não tinha a burocracia
para fechar o lugar, então não
coletei nada. A gente tem que
ser realista. Se quisermos
atrair a atenção para a arqueologia, não pode ser tirando o lazer de um pessoal naquelas
condições", diz. No país da bola
e da exclusão, até a ciência tem
que esperar no time de fora.
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