São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Pega essa bola e vai estudar

MÁRVIO DOS ANJOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Ópio do povo. Jogo estúpido. Moda inglesa. Esporte de alienados. Aparato da ditadura. Os intelectuais não economizaram quando viram o futebol como nocivo e emburrecedor.
Hoje, porém, são poucos os artistas, cientistas sociais e estudiosos que tratam o esporte como tema a ignorar. Virou uma simples questão de gosto.
Assim é com o crítico e ensaísta Antonio Candido, 87, um dos maiores intelectuais do país. Seu laço com a bola surge, no máximo, em época de Copa.
"Não me interessei por futebol, pelo mesmo motivo que muitos não se interessam pelas campanhas de Napoleão ou Aníbal. A vida tem dessas coisas, as pessoas não se interessam pelos mesmos assuntos."
"Mineiro nascido no Rio", ele o diz, Candido tem simpatia de fundo nostálgico pelo Botafogo, em cuja vizinhança morou, e só. Sinceramente, reafirma não entender nada de futebol.
"Realmente, não sei nem como se bate um escanteio", diz, respondendo com humor a José Lins do Rego (1901-57).
Humor também tem Manolo Florentino, 48, historiador da UFRJ e botafoguense, sobre a frase de Lins do Rego. "Fica ainda mais difícil quando é cobrado pela esquerda. Não conheço nada que torne a idéia de Brasil tão tangível quanto os jogos da seleção na Copa. Não tem que haver preconceito."
Para o historiador, esse traço característico muda até o conceito de herói pátrio. "Herói é aquele que é bom para as pessoas. E estão mais próximos disso Garrincha, Pelé e Rivellino do que um Tiradentes ou um dom Pedro 1º, que fundou um país e morreu fora dele."
O preconceito ideológico da esquerda guerrilheira em 1970 foi relatado pelo deputado federal, jornalista e colunista da Folha Fernando Gabeira (PV-RJ) em seu livro "O Que É Isso, Companheiro?". Mas bastou o 4 a 1 sobre a Tchecoslováquia para a ideologia canhota cair.
"Ninguém agüentava, é muito difícil. Claro que havia um trabalho de marketing político para associar a ditadura e a seleção, o Médici fazendo embaixadas. Mas a seleção é o povo, os generais que eram o governo", diz Gabeira, ex-meia-direita juvenil do Tupi de Juiz de Fora e flamenguista praticante.
Hoje reprova o menosprezo ideológico do futebol. "A esquerda se concentrou muito mais na luta de classe, no marxismo, ao passo que os que não eram de esquerda buscaram a antropologia, uma explicação mais cultural e se abriram para elementos considerados secundários. Não tenho dúvidas de que a esquerda errou."
A preocupação sociológica tardia com o futebol nasce, segundo Ferreira Gullar, 75, de uma causa simples. "A verdade é que o pessoal gosta mesmo é de jogar. O que não quer dizer que todos tenham que gostar de futebol", diz o poeta e colunista da Folha, que refuta a máxima de Lins do Rego. "É generalização demagógica."
Ajuda também o fato de muitos terem sido criados num ambiente em que ouvir e jogar futebol eram a maior diversão.
Na sua São Luís natal, aos dez, Gullar tabelava com um garoto de oito que seria conhecido como Canhoteiro pelos são-paulinos -o "Garrincha da esquerda" nos anos 50 e 60.
"Jogávamos na frente do Mercado Novo, em São Luís. Não fosse o futebol, talvez tivesse vendido mingau como o pai dele, seu Cecílio, que não queria vê-lo metido com bola."
Vascaíno, Gullar chegou a ser juvenil do glorioso Sampaio Corrêa (MA). "Mas eu não tinha esse talento. A sociedade é um mutirão de talentos. Um nasce jogador, o outro, poeta."
Marcos Vinícios Vilaça, 66, não escapou da febre em Limoeiro (PE), mas a vocação era o poder. Foi diretor de futebol do Náutico e hoje é ministro do TCU e presidente da Academia Brasileira de Letras, onde o futebol gera discussões imortais.
"Quando eu cheguei à ABL, a primeira coisa que o [historiador, advogado, jornalista, político e acadêmico] Barbosa Lima Sobrinho me perguntava era sobre o Náutico", diz.
Para alguns intelectuais, o que falta às vezes é tempo. "Minhas atribuições muitas vezes não me permitem acompanhar como gostaria", diz Roberto Minczuk, maestro titular da Orquestra Sinfônica Brasileira, que regerá 18 orquestras pelo mundo até o fim do ano. Cedo enfrentou o dilema do tempo entre o lazer e o trabalho.
"Aos 14 anos, ganhei uma bolsa de estudos nos EUA e, no primeiro verão, acabei jogando mais bola do que estudando música. Tinha que parar."
Mas não ignorar. No primeiro concerto com a Sinfônica de São Paulo após o penta, incentivou os músicos a tocar a "Quinta Sinfonia" de Tchaikovski com adereços verde-amarelos, na Sala São Paulo.
Poucos podem ser como Eduardo Góes, 40, doutor pela Universidade de Indiana (EUA) e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Nas pesquisas em sítios da Amazônia, a bola está presente. "Em trabalhos de campo, sempre jogamos com o pessoal da região." Às vezes, porém, os interesses se chocam.
Há oito anos, às margens do rio Negro, um campo estava sobre um sítio arqueológico.
"A cerâmica brotava do chão, mas eu não tinha a burocracia para fechar o lugar, então não coletei nada. A gente tem que ser realista. Se quisermos atrair a atenção para a arqueologia, não pode ser tirando o lazer de um pessoal naquelas condições", diz. No país da bola e da exclusão, até a ciência tem que esperar no time de fora.


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