São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Cinema

Em cartaz, a bola pipoca

por Inácio Araujo

O boxe pode. Mais do que qualquer outro esporte, ele se presta a desenvolver as mitologias da vitória e da derrota, as metáforas da violência e da corrupção, a lançar luz sobre a luta de homens (pobres) pela sobrevivência num mundo adverso.
Os jogadores de futebol não são diferentes: garotos pobres, talentosos, talvez indefesos, às voltas com ricos da fama, clubes inescrupulosos, empresários gananciosos e contusões fatais. Porém, por alguma razão misteriosa, o futebol e seus craques não rendem cinema.
A mitologia do boxe arrefeceu nas últimas décadas. Talvez o mundo tenha se tornado violento demais para a "nobre arte" e o tenha substituído pelas artes marciais, onde o pau come sem lei e sem alma, com as bênçãos de Bruce Lee, ídolo e mártir do gênero, morto por pancadas em filmagem.
Já o futebol, entra século, sai século, continua um deserto cinematográfico. Haverá quem lembre de "Garrincha, Alegria do Povo" ou quem diga que o "Canal 100" filmava o jogo melhor que ninguém. Mas isso é outra coisa. Quero ver o cara imaginar os jogadores, seus problemas, e isso dar bom filme, como fez Hitchcock, já em 1928, com "O Ringue".
Haverá quem mencione "Boleiros" (1998). É bom filme, mas, vamos convir, sua primeira virtude é ter percebido que, com uma história só de futebol, não iria a parte alguma. O bom é que são várias histórias pequenas, quase mitos. Nada que se compare, por exemplo, com a história de Heleno de Freitas, o rapaz rico, culto, intratável, cabeceador temivel, advogado, galã e, por fim, sifilítico. Mas Heleno era brasileiro e o brasileiro não aprecia anti-heróis.
Mais ecléticos, os americanos aceitam o herói vencedor, como o de "Gentleman Jim" (1942), mas também os perdedores de "Punhos de Campeão" (1949), "Touro Indomável" (1980), "Cidade das Ilusões" (1972) ou "Menina de Ouro" (2004).
Pode-se argumentar que o boxe é um esporte individual, em que o enfrentamento é direto. Ok. Mas o futebol americano é coletivo e já rendeu belos espetáculos, embora em menor quantidade, como "Jogo Sujo" (1972). Até beisebol, que é aquela coisa chata, volta e meia aparece, como no melaço "Campo dos Sonhos" (1989), para não falar dos tempos em que Spencer Tracy era jornalista especializado nesse esporte, em "A Mulher do Ano" (1942).
O futebol americano, como o basquete, tem seus entornos lembrados em vários momentos. O primeiro é uma metáfora do espírito de conquista americano (também conhecido como imperialismo): é um jogo que consiste em avançar no território inimigo. O basquete cresceu nas últimas décadas, junto com o declínio do racismo. Esses esportes também têm técnicos como personagens em vários momentos. Nick Nolte foi um memorável técnico com conflitos morais em "Blue Chips" (1994), um filme nem tão memorável assim.
Vamos procurar mais longe: o tênis já esteve em destaque, pelas mãos de Hitchcock, em "Pacto Sinistro" (1951). Ele abriu o "Pierrot le Fou" (1965), de Jean-Luc Godard. Mais recentemente, Woody Allen voltou à carga em "Match Point". E descontemos o "Blow Up" (1965) de Antonioni, onde joga-se sem bola. Aí não vale.
Que dizer do automobilismo? Desde os anos 30, pelo menos, vários diretores importantes dedicaram-se a essa saga de enorme potencial dramático (a morte ronda todo o tempo, afinal). O principal deles foi Howard Hawks ("Delirante", 1932, ""Faixa Vermelha 7000", de 1965), que por sinal também dava suas voltas na pista. Mas a glória veio mesmo com "Grand Prix" (1966), de John Frankenheimer, a melhor filmagem jamais feita de carros em velocidade numa pista; além de um grande sucesso, inspirou a carreira de Emerson Fittipaldi.
Não falemos dos filmes de perseguição automobilística, como "Operação França", em que guiar automóveis não é um esporte, nem um meio de vida, mas uma necessidade ditada pela urgência do momento.
Até o bilhar teve momentos de enorme nobreza. "The Hustler" (1961), de Robert Rossen, é tão antológico que Martin Scorsese acabou por criar uma sequência:, notável também, "A Cor do Dinheiro" (1986).
Talvez devêssemos admitir logo de uma vez: o futebol não dá certo no cinema porque nunca emplacou nos EUA. Não vamos tão depressa, pois aí está "Fuga para a Vitória" (1981), um dos filmes mais ridículos jamais feitos, e o diretor era John Huston, glória nacional americana, e o ator era Pelé, o maior jogador do mundo. Sim, o futebol ainda é um desafio a ser vencido pelo cinema. Parece que é mais fácil Fritz Walter comandar um milagre em Berna do que se fazer um filme que se diga sobre esse esporte.


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