São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Teatro

Ser ou não ser em 3 atos

por Nelson de Sá

"Futebol e teatro. Para os bobos, não existe a menor relação entre uma coisa e outra. Ilusão. Existe sim. O futebol vive de seus instantes dramáticos, e um jogo só adquire grandeza quando oferece uma teatralidade autêntica. Pode ser uma pelada. Mas se há dramatismo ela cresce, desmedidamente."
Era a visão do dramaturgo e tricolor Nelson Rodrigues, que relacionava o futebol ao teatro, o jogador ao ator -ou, melhor, à sua personagem.
O espetáculo
Antes, porém, a cena. Outro dramaturgo, Oswald de Andrade (1890-1954), escreveu em louvor à excursão européia do Paulistano, em 1925: "7 a 2/ 3 a 1/ A injustiça de Cette/ 4 a 0/ 2 a 1/ 2 a 0/ 3 a 1/ E meia dúzia nos portugueses".
Do poema modernista ao roteiro "O Perigo Negro", publicado em 1938, sobre ascensão e queda de um jogador, Oswald voltou regularmente ao tema. Mas no teatro a maior marca que o futebol deixou nele foi conceitual, na sua visão para o espetáculo.
Está no texto "Do teatro, que é bom...", uma entrevista do dramaturgo consigo mesmo, que pode ser encontrada no livro "Ponta de Lança".
Ele propõe um "teatro de massa", um "espetáculo popular e educativo" mais "próximo das origens verídicas do teatro: festa popular e grande catarse". Como na Grécia antiga, mas "um teatro para hoje, um teatro de estádio".
Para o autor de "O Rei da Vela" e "A Morta", "o estádio de futebol exprime a nossa época". E é nos "estádios de nossa época" que "há de se tornar realidade o teatro de amanhã, como foi na Grécia, o teatro para a vontade do povo e a emoção do povo".
Em tempo, "a injustiça de Cette" do poema (ou seja, a derrota do Paulistano para o clube de Sète, como se grafa hoje) foi inspiração para outros dois apaixonados do futebol e do teatro, o crítico brasileiro Décio de Almeida Prado e o diretor francês Jean Vilar.

Os personagens
Nelson Rodrigues (1912-1980) vinculou futebol e teatro, na citação acima, ao relatar como o editor Adolfo Bloch o convenceu a escolher um "personagem de cada semana" para a "Manchete Esportiva", nos anos 50.
O dramaturgo criou para o palco vários personagens ligados ao futebol, como o vascaíno Tuninho, que aposta na vitória no Vasco contra 200 mil pessoas no Maracanã, em "A Falecida", ou o tricolor Leleco, de "Boca de Ouro".
Mas foi na revista que ele vislumbrou o maior de todos, no perfil "A realeza de Pelé", de março de 1958. Foi, como atesta o biógrafo Ruy Castro, a primeira vez em que o jogador, então com 17 anos, foi chamado de rei. Do texto, escrito após a vitória do Santos sobre o América por 5 a 3, no Maracanã, com quatro gols de Pelé:
"Verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope... O que chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés."
Depois de muito descrever "a majestade dinástica", a "plenitude de confiança, de certeza", a crônica termina com a previsão de que, "com Pelé no time, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas". Era a imagem criada pelo cronista para explicar a derrota na Copa de 1950.
Para além dos torcedores nas peças e dos jogadores nas crônicas, o teatro inspirou em Rodrigues outros personagens e tipos, da "grã-fina de narinas de cadáver" ao Sobrenatural de Almeida. Sem esquecer os juízes, como escreveu, em 1956:
"A arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo. Só o juiz gatuno, o juiz larápio dá ao futebol uma dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana. O espetáculo deixa de se resolver em termos chatamente técnicos, táticos e esportivos. Passa a ter uma grandeza específica e terrível."

As histórias
Dado por Nelson Rodrigues como seu herdeiro na dramaturgia, Plínio Marcos (1935-1999), diferentemente dos antecessores, foi "boleiro", como ele descrevia. Chegou a jogar na Portuguesa Santista, na ponta esquerda. Dizia ter jogado com os irmãos de Pelé.
Nascido no bairro portuário do Macuco, foi no circo, como palhaço a partir dos 16 anos, paralelamente ao futebol, que ele desenvolveu a habilidade para contar histórias -seu maior talento- no teatro e posteriormente nas crônicas. "O circo me ensinou a magia do conflito."
Nas peças, o futebol poucas vezes foi além da moldura, mas nos seus textos de imprensa Plínio Marcos foi o cronista, não dos estádios, mas da várzea. Não de Pelé, mas do goleiro Veludo, "encontrado numa sarjeta" e levado ao hospital, "onde ficou de favor". De uma crônica para a revista "Veja", em 1976:
"Não há boleiro que um dia tenha envergado a gloriosa camisa da seleção que não tenha dado seus primeiros quiquinhos num campinho do alto da pirambeira ou da beira da vala. Nesses campinhos se fez muita história. Histórias que foram passando de geração em geração até começarem a morrer... Sei de lances que vi ou escutei da boca das curriolas. E vou passando pra frente."


Texto Anterior: Cinema - Inácio Araujo: Em cartaz, a bola pipoca
Próximo Texto: Literatura - Nélida Piñón: Duas mulheres no esporte de machos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.