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DRAUZIO VARELLA
A ética de Sete Dedos, Meneghetti, Promessinha
O crime não compensa, dizia com ênfase o locutor no
final. No tempo em que ter um
rádio era privilégio de poucos no
bairro do Brás, os vizinhos se
reuniam religiosamente em casa
de meu tio Constantino para ouvir um programa da Record que
dramatizava as peripécias vividas pelos criminosos mais temidos.
De calças curtas, eu ouvia com
a respiração presa as aventuras
de Sete Dedos, Meneghetti, Dioguinho, Boca de Traíra, Promessinha, invariavelmente mandados para trás das grades pela diligente polícia paulista, para
provar que o crime realmente
não compensava. A licenciosidade do tio, que permitia aquele
mergulho no mundo dos adultos, transformava-me em centro
das atenções da molecada no dia
seguinte.
Eu relatava as histórias nos
mínimos detalhes, auscultando
as reações da platéia ao ouvir a
descrição das fugas espetaculares de Meneghetti, feito gato pelos telhados, da frieza de Sete
Dedos, ao invadir as casas sorrateiramente enquanto a família
dormia, e da perversidade de
Promessinha, ao perguntar se a
vítima preferia tiro ou beliscão,
que era dado com alicate no umbigo dos que optavam pela segunda alternativa.
Depois vieram os anos 60, e
surgiu no submundo a figura do
bandido-malandro, mistura de
ladrão, boêmio, contrabandista,
traficante de maconha e anfetamina, explorador do lenocínio e
das casas de jogo.
Eram marginais como Hiroíto,
o "Rei da Boca do Lixo", Nelsinho da 45, Marinheiro, Brandãozinho e Quinzinho, célebre
contador de casos, que concentravam suas atividades nas imediações das ruas Vitória, Santa
Ifigênia, dos Gusmões, dos Andradas.
No final dos anos 80, quando
iniciei meu trabalho na Casa de
Detenção, conheci detentos mais
velhos que haviam cumprido pena com esses marginais. Diziam
que Sete Dedos era de educação
exemplar, desde que não fosse
chamado pela alcunha; o italiano Meneghetti, um senhor de
respeito; o franzino e míope Hiroíto se impunha pela inteligência no relacionamento social.
Eram homens respeitadores de
três princípios sagrados no mundo do crime: jamais delatar,
cumprir a palavra empenhada e
respeitar os familiares dos companheiros.
No final dos anos 70, a cocaína
se insinuou entre a marginalidade e se alastrou na forma de epidemia na década seguinte. A
partir dos anos 90, a cocaína em
pó cedeu lugar ao crack, que tomou conta da periferia de São
Paulo e invadiu as prisões, subvertendo a hierarquia e os valores éticos.
A necessidade de divisão do
trabalho para ganhar eficiência
no tráfico e na distribuição da
droga levou à formação de quadrilhas e associações de criminosos.
A velha ordem imposta pelos
bandidos famosos por sua trajetória marginal foi desalojada pela lógica de mercado baseada no
lucro, segundo a qual os personagens se tornaram peças anônimas e descartáveis.
Os princípios éticos do passado
foram substituídos pela lei do
mais forte: "Contra a força não
existe argumento". Entramos na
era do crime sem face humana,
quadrilheiro, em que a vida do
criminoso pode ser suprimida
com a mesma imprevisibilidade
com a qual ele tira a vida alheia.
Drauzio Varella, médico infectologista e colunista da Folha, é autor do livro
"Estação Carandiru".
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