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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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saúde

História que começou com a Santa Casa é marcada por grandes contrastes sociais


A primeira ação benemérita da Santa Casa de Misericórdia de que se tem notícia é a doação de velas para o enterro do índio Tibiriçá, em 1560. Os casos médicos mais graves registrados nos primórdios da vila de São Paulo eram vítimas das batalhas entre tribos da Borda do Campo e as dos campos de Piratininga, onde então ficava a capital. Hoje, os hospitais da região da avenida Paulista têm mais equipamento de alta tecnologia do que o Canadá inteiro


AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

A cidade de São Paulo conta com 4.920 consultórios de especialidades e 915 clínicas e hospitais.Tem um médico para cerca de 270 habitantes, quatro vezes o que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Hospitais do espigão da Paulista têm mais aparelhos de última geração do que o Canadá inteiro. Deveria ser motivo de comemoração. Mas exames e cirurgias na rede pública ainda podem demorar meses ou anos.
Da São Paulo de 1554, há vagas anotações de pacientes tratados no Pátio do Colégio, possivelmente por religiosos da futura Irmandade da Santa Casa. A existência da instituição se confirma por documento de 1560, no qual aparece como doadora de velas para o velório do índio Tibiriçá.
Mas é só em 1597 que o poder público se manifesta, nomeando, na falta de médicos, o barbeiro Antonio Ruiz para "juiz de Officio dos physicos". Enquanto a Europa já tinha uma tradição de escolas médicas e as cidades brasileiras à beira-mar acolhiam profissionais estrangeiros, a isolada São Paulo não encontrava doutor nenhum que se interessasse por ela.
Na São Paulo colonial, os casos mais graves eram vítimas das batalhas entre tribos da Borda do Campo e dos Campos de Piratininga, onde estava a então capital, lembra José da Silva Guedes, ex-secretário da Saúde do município e do Estado e especialista em saúde pública da Santa Casa.
Em 1560, a antecessora da Câmara Municipal passa a se ocupar das questões de saúde da cidade. Cabia a ela cuidar da sujeira dos lixões, das águas nas ruas, dos matadouros e da entrega de carne.
Em 1600, a Santa Casa está no largo da Misericórdia, no coração do chamado centro velho. Era a única instituição hospitalar.
Em 1826, a Santa Casa ganha novas instalações na Chácara dos Ingleses, na rua da Glória. Em 1884, é inaugurado o prédio onde hoje se encontra, em Santa Cecília, graças a doações das famílias Rego Freitas e do barão de Piracicaba. As suas arcadas são referência arquitetônica na cidade.

Pobres e enforcados
Em 1839, São Paulo já tem cinco médicos, quatro cirurgiões e sete farmacêuticos. Em 1850, a Câmara proíbe o enterro em igrejas e, quatro anos depois, é inaugurado o cemitério da Consolação. Pobres e enforcados continuaram a ser enterrados no cemitério da rua da Glória, perto da forca e da capela dos Aflitos.
Boa parte dessas informações é confirmada pelo livro "História e Memórias", de 1985, documento comemorativo dos 40 anos da Secretaria Municipal de Cultura e Higiene, que se ocupava também dos serviços relativos ao estádio municipal. A pesquisadora Aldaíza Sposati, atual secretária municipal da Assistência Social, foi quem comandou o projeto.
Em 1825, a Santa Casa cria a "roda dos enjeitados", uma prática oriunda da Europa e adotada em muitas instituições no Brasil para impedir que bebês abandonados fossem disputados pelos cães.
A "roda" era uma caixa oca, que girava sobre si mesma, com um dos lados abertos, onde o bebê era deixado pelas mães que não queriam ou não podiam criá-los. Ela funcionou até 1948.
No final do século 19 e no início do 20, vão surgir sociedades e hospitais dos principais grupos de imigrantes: a Beneficência Portuguesa, o Hospital Matarazzo (italiano), o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o Albert Einstein (comunidade judaica), o Sírio-Libanês e o Samaritano (criado por ingleses). A Maternidade São Paulo -destinada às mães pobres- se tornaria a maior da cidade.
Com a industrialização e a vinda dos barões do café para a capital, criou-se um "mercado" de saúde em que os pacientes podiam pagar, garantindo atendimento e hotelaria diferenciados, sem ter de recorrer à Europa.
A população em geral continuava praticamente sem assistência. O medo das epidemias, especialmente a "bexiga" (varíola), fez com que se criasse em 1896 o Hospital de Isolamento, na estrada do Araçá, hoje avenida Dr. Arnaldo, onde está o Emílio Ribas.

Os especialistas
O conceito de saúde pública começa a se formar com especialistas como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emílio Ribas, todos à frente de institutos que até hoje são referências no país.
Em 1913, é criada a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que passa a utilizar a Santa Casa como hospital-escola. Na década de 30, a então EPM, Escola Paulista de Medicina, faz a mesma coisa. O Hospital das Clínicas é inaugurado em 1944. A Santa Casa cria sua Faculdade de Ciências Médicas em 1963.
"A Santa Casa foi pai e mãe de três escolas médicas", diz Quirino Ferreira Neto, 85, médico da irmandade desde 1939.
Com o rápido crescimento a partir do final do século 19, parte da população passa a morar em condições precárias e de risco para a saúde. Em 1918, a gripe espanhola mata 5.000 pessoas em São Paulo. No Rio, foram 18 mil mortos. "Os bondes recolhiam os corpos", diz Octávio de Mesquita Sampaio, provedor da Santa Casa.
A principal e mais assustadora das epidemias modernas, a de meningite meningocócica, vem ocorrer no início dos anos 70, relata Tuba Milstein Kuschnaroff, 72, titular de infectologia da Santa Casa. Entre 1972 e 1975, foram 27.641 casos na Grande São Paulo, 17,8 mil só no ano de 1974. A professora Rita de Cássia Barradas Barata, autora do livro "Meningite: Uma Doença sob Censura?", lembra que o regime militar queria negar a existência da epidemia. Até hoje, as pessoas desconfiam dos números oficiais.
A cidade entrou em pânico. "Quando passavam diante do Emílio Ribas, ônibus e carros fechavam as janelas", diz Milstein.
Foi também o Emílio Ribas que enfrentou a epidemia de Aids. Em 20 anos, foram 51.167 casos da doença na cidade, com 30.210 mortos. Cerca de 60% dos casos passaram ou estão sendo acompanhados pelo Emílio Ribas.
Graças ao desenvolvimento das vacinas e ao sucesso dos programas de imunização no país, pode-se dizer que hoje São Paulo sofre mais com as políticas de saúde que com as epidemias.
A Constituição de 1988 universalizou e municipalizou o atendimento, criando o SUS e estabelecendo a saúde como um direito de todos. Embora evoluindo em qualidade e agilidade, o SUS ainda não perdeu o estigma de serviço ruim. Em lugar de lutar por um sistema público melhor, a classe média optou pelos planos de saúde, investindo neles parte significativa de seus orçamentos.


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