São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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RUY CASTRO

Escalado na marra?

VOCÊ conhece a lenda: inconformados com a pouca produtividade do time do Brasil nas duas primeiras partidas e tendo pela frente o temido jogo contra a URSS, uma comissão de jogadores (Didi, o mais importante, Nilton Santos, o mais velho, e Bellini, o capitão) teria ido a Vicente Feola pedir a entrada de Garrincha. Sem ele, diriam, não nos classificaríamos.
Essa também é a história que comecei a ouvir um ou dois anos depois da Copa. Apesar de ter acompanhado aquele Mundial por todos os veículos então disponíveis, não me lembro de que, durante a Copa, ou logo depois, se falasse no assunto. A revista "Manchete Esportiva", por exemplo, cujos enviados -o repórter Ney Bianchi e o fotógrafo Jader Neves- eram amigos de vários jogadores, jamais tocou no assunto.
Mas foi o que passou para a história. Didi, Nilton Santos e Bellini pediram a escalação de Garrincha. Não se sabe se exigiram outras alterações, mas isso foi insinuado. O fato é que, para o jogo contra a URSS, Feola escalou também Pelé, já recuperado de uma contusão (barrou o palmeirense Mazola), e escalou o vascaíno Vavá. E trocou ainda o volante são-paulino Dino pelo santista Zito. Com essas alterações, o Brasil teria encontrado sua formação ideal e destruído os russos.
Comecei a desconfiar de que algo não batia nessa história quando, em São Paulo, nos anos 80, descobri que a mesma história circulava, só que com Zito no lugar de Bellini. Quer dizer que Zito teria ido pedir a Feola que o escalasse no lugar de Dino? Mas não é notório que aquela seleção era considerada um modelo de organização e disciplina, e só por isso foi campeã do mundo? Quando um grupo de jogadores vai ao treinador e impõe a escalação de um ou de outro -e a conseqüente barração de outros tantos-, como fica o clima?
De 1993 a 1995, quando trabalhei na apuração de meu livro "Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha", pude mergulhar fundo nesse quesito. A primeira providência foi falar com os três protagonistas: Didi, Bellini e Nilton Santos. Todos negaram que a história tivesse acontecido, e ainda apresentaram bons argumentos. "Feola não era bobo como pensavam", disse Didi.
Bellini foi ainda mais direto: "Imagine se algum de nós se atreveria a passar por cima de seu Feola e, pior ainda, de seu Carlos Nascimento [o severo supervisor da seleção e verdadeiro chefe da delegação]. Seria um desrespeito. Eram homens muito mais velhos, não tínhamos essa liberdade". E Bellini deu outro argumento definitivo: "Joel era querido por todos. E o Flamengo tinha mais três jogadores na seleção: Moacir, Dida e Zagallo. O ambiente ficaria horrível se os jogadores conspirassem uns contra os outros". E, finalmente, Nilton Santos também desmentiu: "Seu Carlos Nascimento nunca deixaria isso acontecer. Ele era fogo na roupa!". Quando perguntei a Nilton por que ele próprio ratificara tantas vezes a lenda, deu a entender que falara por falar (e, a partir daí, passou a desmentir a história).
Fui conversar também com Joel, que, em 1994, trabalhava na peneira do Flamengo. Era a primeira vez que um jornalista ou escritor lhe perguntava sobre sua substituição por Garrincha em 1958. Para Joel, fora uma coisa natural. Tinha sido quebrado pelo lateral inglês no jogo anterior e estava sem condições de jogo. Garrincha entrara em seu lugar e "acabara com a festa" -ele, Joel, era grande fã do ponta do Botafogo. Nada de anormal na sua substituição, nenhum trauma, nenhum rancor de sua parte.
Finalmente, o preparador físico Paulo Amaral, o tesoureiro Adolpho Marques, o treinador Zezé Moreira e outros jogadores daquela época (Gilmar, Djalma Santos, Orlando, Zagallo, Julinho Botelho, Jordan, Pampollini, Sabará, Altair, Neivaldo), todos enfatizaram a impossibilidade de um grupo impor escalações sem quebrar a harmonia. E as inúmeras fotos de Joel, abraçado a um suado Garrincha no vestiário, após cada vitória, provam que essa harmonia nunca se quebrou.
Para completar, o Brasil entrou tranqüilo contra a URSS (bastava-lhe um empate). Feola já podia escalar seu time mais ofensivo -o que envolvia, naturalmente, Garrincha. "Mas até isso estava previsto", disse-me Paulo Amaral. "Guardamos Garrincha de propósito sabendo que, a partir dali, precisaríamos atacar com tudo."
Por fim, perguntei a meu velho colega de "Manchete" Ney Bianchi, íntimo de Didi, de onde saíra a lenda de que Garrincha fora escalado na marra: "Futrica da imprensa botafoguense", ele riu.


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