São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Copa 1958

O herói mora ao lado

A história secreta de Lorenzo J. Vilizio, dirigente da Conmebol que numerou o escrete e evitou sua eliminação na Copa do Mundo da Suécia

ALEC DUARTE
ENVIADO ESPECIAL A MONTEVIDÉU

Nem mesmo os uruguaios sabem dizer com detalhes quem foi Lorenzo J. Vilizio. Há registros dispersos, nenhum parente direto localizado, pouca informação disponível. Contador de ofício e dirigente esportivo por vocação, esse homem evitou que a seleção brasileira -que conquistou sua primeira Copa do Mundo há exatos 50 anos- fosse desclassificada antes mesmo de o torneio começar.
Representante da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) no comitê organizador da Fifa na Suécia, Vilizio foi o responsável pelo maior enigma do torneio: a numeração das camisas dos brasileiros.
Por que o goleiro Gilmar usava a camisa 3? Por qual motivo Garrincha, ponta-direita, vestia a 11, que deveria ser do colega Zagallo, ponta-esquerda que envergava a 7? Os jogadores não têm a menor idéia. Durante décadas, cartolas da CBD cultivaram a versão de que a Fifa impusera a esdrúxula decisão.
A verdade é que a CBD pensou em tudo (montou uma comissão técnica com profissionais pioneiros em suas especialidades), menos nos números da equipe.
Em parte, foi uma estratégia de Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação e supersticioso de primeira hora. Ele queria dissociar nomes de números, com medo da "tremedeira" -o Brasil vinha do trágico Maracanazo de 1950 e de uma doída derrota para a Hungria, quatro anos depois, na Suíça.
O técnico Vicente Feola chegou a dizer, semanas antes do início do Mundial, que pretendia usar outro critério para definir a numeração dos atletas do elenco, "talvez por ordem alfabética".
O fato é que simplesmente não houve critério: a ficha de inscrição da seleção chegou incompleta à Fifa, que no dia 1º de junho de 1958, em Estocolmo, iniciou os trabalhos do 31º Congresso, com 188 delegados de 69 países.
A primeira tarefa de Vilizio como membro da comissão de conflitos (uma corte suprema na Fifa naquela Copa do Mundo) foi deliberar sobre a eliminação do Brasil que, afinal, não havia preenchido corretamente o formulário de inscrição.
Em vez de debater o assunto (havia forte pressão européia, em especial do lendário Stanley Rous, membro da comissão e que se tornaria presidente da Fifa entre 1961 e 1974), o uruguaio resolveu o problema à sua maneira: pegou uma caneta e colocou, aleatoriamente, números na frente dos nomes dos jogadores brasileiros relacionados, que ele pouco conhecia. Acertaria só dois, o do ponta-esquerda reserva, Pepe (22), e do defensor Dino Sani (5).
Esse herói nacional incógnito e misterioso que teve participação indireta, mas fundamental, na conquista da Copa da Suécia é um desconhecido também em seu país.
Em Montevidéu, a Folha pesquisou centenas de documentos e jornais, além de entrevistar pessoas que, de alguma forma, conviveram com Vilizio, que morreu nos anos 80.
O quebra-cabeça começou a ser decifrado com uma nota do jornal "El País" de 3 de junho de 1958, no qual os afazeres de Vilizio na Suécia são descritos em detalhe. Até então, nem mesmo a AUF (Associação Uruguaia de Futebol) tinha sido capaz de confirmar a presença do cartola no Mundial.
Eduardo Rocca Couture, ex-vice-presidente da Fifa e destacado dirigente do país vizinho, acrescentou mais um fato: que durante anos Vilizio deu expediente, como contador, na diretoria do Nacional, time mais antigo do Uruguai (foi fundado em 14 de maio de 1899).
De fato, o nome de Vilizio, que também foi professor da Faculdade de Ciências Econômicas, aparece em papéis oficiais do clube entre 1940 e 1944, como contador, e entre 1945 e 1947, como conselheiro.
Depois disso, nada. Foi o período em que o uruguaio se lançou em carreira na Conmebol, onde chegou a vice-presidente na gestão do argentino Raúl Colombo (1961-1966).
Nas décadas seguintes, manteve-se fiel a seu estilo "low profile" -ele jamais se vangloriou da participação na conquista brasileira, nem mesmo de ter "inventado" a 10 de Pelé.
Até o fim da vida, Vilizio foi aos jogos do Nacional no estádio Centenário, palco da primeira Copa do Mundo, em 30.
Herói secreto do escrete brasileiro, guardou consigo, até a morte, a história do gesto solidário que mudaria a própria história do futebol mundial.


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