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Copa 1958
O herói mora ao lado
A história secreta de Lorenzo J. Vilizio, dirigente da Conmebol que numerou o escrete e evitou sua eliminação
na Copa do Mundo da Suécia
ALEC DUARTE
ENVIADO ESPECIAL A MONTEVIDÉU
Nem mesmo os uruguaios
sabem dizer com detalhes
quem foi Lorenzo J. Vilizio.
Há registros dispersos, nenhum parente direto localizado, pouca informação disponível. Contador de ofício e
dirigente esportivo por vocação, esse homem evitou
que a seleção brasileira
-que conquistou sua primeira Copa do Mundo há
exatos 50 anos- fosse desclassificada antes mesmo de
o torneio começar.
Representante da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) no comitê
organizador da Fifa na Suécia, Vilizio foi o responsável
pelo maior enigma do torneio: a numeração das camisas dos brasileiros.
Por que o goleiro Gilmar
usava a camisa 3? Por qual
motivo Garrincha, ponta-direita, vestia a 11, que deveria
ser do colega Zagallo, ponta-esquerda que envergava a 7?
Os jogadores não têm a menor idéia. Durante décadas,
cartolas da CBD cultivaram
a versão de que a Fifa impusera a esdrúxula decisão.
A verdade é que a CBD
pensou em tudo (montou
uma comissão técnica com
profissionais pioneiros em
suas especialidades), menos
nos números da equipe.
Em parte, foi uma estratégia de Paulo Machado de
Carvalho, chefe da delegação
e supersticioso de primeira
hora. Ele queria dissociar
nomes de números, com medo da "tremedeira" -o Brasil
vinha do trágico Maracanazo de 1950 e de uma doída
derrota para a Hungria, quatro anos depois, na Suíça.
O técnico Vicente Feola
chegou a dizer, semanas antes do início do Mundial, que
pretendia usar outro critério
para definir a numeração
dos atletas do elenco, "talvez
por ordem alfabética".
O fato é que simplesmente
não houve critério: a ficha de
inscrição da seleção chegou
incompleta à Fifa, que no dia
1º de junho de 1958, em Estocolmo, iniciou os trabalhos
do 31º Congresso, com 188 delegados de 69 países.
A primeira tarefa de Vilizio
como membro da comissão de
conflitos (uma corte suprema
na Fifa naquela Copa do Mundo) foi deliberar sobre a eliminação do Brasil que, afinal, não
havia preenchido corretamente
o formulário de inscrição.
Em vez de debater o assunto
(havia forte pressão européia,
em especial do lendário Stanley
Rous, membro da comissão e
que se tornaria presidente da
Fifa entre 1961 e 1974), o uruguaio resolveu o problema à sua
maneira: pegou uma caneta e
colocou, aleatoriamente, números na frente dos nomes dos
jogadores brasileiros relacionados, que ele pouco conhecia.
Acertaria só dois, o do ponta-esquerda reserva, Pepe (22), e
do defensor Dino Sani (5).
Esse herói nacional incógnito
e misterioso que teve participação indireta, mas fundamental,
na conquista da Copa da Suécia
é um desconhecido também em
seu país.
Em Montevidéu, a Folha
pesquisou centenas de documentos e jornais, além de entrevistar pessoas que, de alguma forma, conviveram com Vilizio, que morreu nos anos 80.
O quebra-cabeça começou a
ser decifrado com uma nota do
jornal "El País" de 3 de junho
de 1958, no qual os afazeres de
Vilizio na Suécia são descritos
em detalhe. Até então, nem
mesmo a AUF (Associação
Uruguaia de Futebol) tinha sido capaz de confirmar a presença do cartola no Mundial.
Eduardo Rocca Couture, ex-vice-presidente da Fifa e destacado dirigente do país vizinho,
acrescentou mais um fato: que
durante anos Vilizio deu expediente, como contador, na diretoria do Nacional, time mais
antigo do Uruguai (foi fundado
em 14 de maio de 1899).
De fato, o nome de Vilizio,
que também foi professor da
Faculdade de Ciências Econômicas, aparece em papéis oficiais do clube entre 1940 e
1944, como contador, e entre
1945 e 1947, como conselheiro.
Depois disso, nada. Foi o período em que o uruguaio se lançou em carreira na Conmebol,
onde chegou a vice-presidente
na gestão do argentino Raúl
Colombo (1961-1966).
Nas décadas seguintes, manteve-se fiel a seu estilo "low
profile" -ele jamais se vangloriou da participação na conquista brasileira, nem mesmo
de ter "inventado" a 10 de Pelé.
Até o fim da vida, Vilizio foi
aos jogos do Nacional no estádio Centenário, palco da primeira Copa do Mundo, em 30.
Herói secreto do escrete brasileiro, guardou consigo, até a
morte, a história do gesto solidário que mudaria a própria
história do futebol mundial.
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