São Paulo, domingo, 30 de maio de 2010

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ANÁLISE

los macaquitos

Violência simbólica da torcida e ofensas entre atletas, como no caso de Grafite , mostram que esporte oscila entre a teatralidade e a ideologia

ME ENCHERAM DE PANCADAS E INSULTOS", LEMBRAVA AMARILDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

De um extremo ao outro da Europa, de uma curva a outra dos estádios, a violência simbólica vem recaindo sobre o atleta negro. Em novembro de 2004, os ultras do Real Madrid passaram o jogo "imitando macacos" sempre que os zagueiros do Bayer Leverkusen, Juan e Roque Júnior, tocavam na bola.
Em abril de 2003, na República Tcheca, os do Sparta "atiraram bananas" ao atacante Adauto, do Slavia. Em fevereiro de 2000, os do Venezia exortaram com faixas o jogador da Juventus, Edgar Davids, a empreender o caminho de regresso à terra dos ancestrais: "Volta para a África, zebra".
Desfraldadas nas arquibancadas, as bandeiras da intolerância também são empunhadas dentro de campo por atletas identificados com suas mensagens. A crônica italiana registra amiúde desavenças e expulsões motivadas pelo uso da expressão racista e xenófoba: "Negro de m... volta para a África".
Empregada a torto e a direito, ela desvela a linha de continuidade entre a curva e o campo, interliga o passado e o presente e sobrepõe, às identidades nacionais, uma diferença à flor da pele.
As reminiscências italianas do bicampeão mundial Amarildo são emblemáticas:
"Minhas pernas são cartas geográficas. Me encheram de pancadas e insultos. Me diziam "sporco negro" e, tudo bem, porque o futebol também é feito de palavrões."
Eis a questão: do que é feito o futebol? Os insultos raciais devem ser aceitos como constitutivos da cultura deste espetáculo?
As reações de Grafite, no Morumbi, em abril de 2005; de Elicarlos, no Mineirão, em junho de 2009; e de Manoel, no Palestra Itália, em abril de 2010, rompem com o tom de resignação que envolve a questão e exprimem o advento de novos atores em um palco que, no entanto, possui uma lógica própria.
Como assinala o sociólogo Norbert Elias, a esfera do lazer representa, na sociedade, um enclave onde as normas de comportamento são em parte suspensas de sorte a proporcionar o "descontrole controlado das emoções".
Mas, acrescenta Christian Bromberger, convém relativizar o significado das manifestações nos estádios, interpretando-as segundo a lógica da confrontação agonística entre as torcidas como "teatralização exuberante do ódio ao adversário".
Mas quando a manifestação se volta contra o atleta da própria equipe, a lógica da rivalidade é subvertida pela ideologia do racismo, conforme revela a trajetória de Fernando Marques da Silva.

PINTADO DE PRETO
O jovem atacante desembarcou em março de 2000 no Calcio para atuar na Série B pelo Treviso. Os ultras locais, no entanto, não lhe deram trégua: "Recebi inclusive ameaça física".
Na partida contra a Ternana, na cidade de Terni, o Treviso perdia por 2 a 1 quando, na esperança de reverter o resultado, o treinador decidiu colocar o recém-chegado.
Os ultras, então, começaram a recolher as faixas e abandonar o estádio em protesto contra o jogador negro.
Se a curva à direita conduzia ao universo de xenofobia e racismo, a curva à esquerda descortinava a existência de uma cultura diversa, cujos contornos ficariam nítidos na partida contra o Genoa.
Cercada de enorme expectativa devido à escalação de Omolade, um após outro os atletas adentraram o gramado, todos, sem exceção, com o rosto pintado de preto.
Surpreendidos com o gesto de solidariedade, os ultras não encontraram alternativa melhor senão estender a vaia ao conjunto do time.
Eis o teatro do futebol. Enquanto parte do público emite urros e atira bananas ao palco para afirmar uma diferença irredutível, outra parte pinta o rosto de preto por solidariedade. Já a crítica tenta retirar o peso das manifestações invocando a lógica que estrutura o espetáculo.
De um lado, atletas brancos reincidem nos insultos raciais sob a justificativa de que tais xingamentos pertencem à cultura supostamente imutável do futebol.
De outro, os atores negros reivindicam o direito de repactuar as regras do jogo, contestar os códigos de comportamento e colocar em questão as armas utilizadas para prevalecer sobre o adversário. Assim, em vez de show de menestréis, propõem e transformam o futebol no teatro experimental onde sujeitos autônomos definem os papéis e as relações que desejam viver.
(JOSÉ PAULO FLORENZANO)


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