São Paulo, domingo, 30 de maio de 2010

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Arquibancadas do ódio

Loteamento dos estádios por torcedores dramatiza a violência social

BERNARDO BUARQUE
DE HOLLANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os anos 1980 foram decisivos no aparecimento e na implantação de uma "cultura torcedora" nos estádios franceses, graças à influência de outros países vizinhos, como a Inglaterra e a Itália.
Juntamente com as oposições em escala local, a popularização das torcidas na França foi forjada pela criação de uma oposição nacional entre clubes.
Segundo o sociólogo Paul Yonnet, a "fabricação das rivalidades" na virada da década de 1980 para 90 vai opor nacionalmente Marselha e Paris. Isto é, uma cidade portuária mediterrânea com tradição futebolística versus uma capital cosmopolita sem apelo clubístico.
Nesta última, o clube principal, o Paris Saint-Germain, surge apenas durante os anos 70, fruto da fusão entre clubes pouco expressivos até então, com o intuito de criar mecanismos de identificação entre a capital e o futebol.
Em Paris, a influência da subcultura juvenil inglesa surge no Parque dos Príncipes já no final dos anos 70.
Ao pesquisar a chegada do rock inglês em terras gaulesas, o sociólogo Patrick Mignon acabou por se deparar com o fenômeno hooligan em seu país.
Em meados dos anos 80, passa-se a chamar informalmente de Kop o setor das arquibancadas situado atrás do gol, no local conhecido como Boulogne.
Nesse setor, houve ofertas de bilhetes promocionais com o intuito de estimular a frequência dos parisienses e de criar um ambiente mais caloroso no estádio. Um dos efeitos disso foi a expulsão de torcedores de outros clubes deste setor, com a migração para Boulogne de grupos jovens skinheads.
De maneira difusa, valores nacionalistas que compreendiam a hostilidade a estrangeiros passam a ser propagados nesta parte das arquibancadas.
No mesmo ano da tragédia de Heysel, em 1985, na partida final da Copa da Europa, disputada entre Liverpool e Juventus de Turim, surgem os Boulogne Boys.
Apesar do nome em inglês, o grupo adota o modelo Ultra das torcidas italianas, que compreende o uso de bandeiras, megafones, animações coloridas e cânticos ritualizados.

ITÁLIA E INGLATERRA
Os dois modelos, o italiano e o inglês, se difundem ainda entre outros clubes franceses. No mesmo ano de surgimento dos Boulogne Boys em Paris, em Nice aparece a torcida Brigade Sud Niçois, associação inspirada nas cores e no nome de uma torcida do Milan A.C., o Brigata Rossonere, que surgira dez anos antes, em 1975.
No início dos anos 90, como uma forma de fazer contraponto à tribuna de Boulogne, tendo apoio da direção do clube, estimula-se a criação de torcidas na tribuna oposta, Auteuil, até então reservada aos torcedores das equipes visitantes.
Em 1991, aparecem duas torcidas, com nomes que remetem à influência italiana -Supras Auteuil- e às origens romanas da cidade -Lutecce Falco.
O público da tribuna de Auteuil se caracteriza por maior heterogeneidade social, com espaço para a presença de migrantes e de moradores da periferia de Paris.
Em contrapartida, a tribuna de Boulogne reivindica maior homogeneidade social e racial, com espaço para difusas manifestações nacionalistas, em slogans como "O Parque dos Príncipes para os parisienses", "o Estádio de França para os franceses" ou ainda "É preciso limpar as tribunas". Grosso modo, costuma-se associar Auteuil ao modelo italiano mais aberto e institucionalizado, e Boulogne ao modelo inglês mais fechado e homogêneo.
Assim, quando se observa a evolução da "subcultura torcedora" no Brasil e na França, deve-se atentar para as influências externas de trocas e reciprocidades entre grupos, mas também para aspectos sociais internos que os antropólogos chamam de dramatização.

TRÁFICO DE DROGAS
Como vários ritos contemporâneos das sociedades democráticas de massa, o futebol põe em cena valores e símbolos que estão presentes no cotidiano.
Assim, grandes cidades no Brasil vivenciam o drama da miséria urbana, do tráfico de drogas e das armas de fogo.
Sabe-se que muitas torcidas organizadas no Rio têm se estruturado em torno dessa lógica de violência e de rivalidades entre favelas que matam jovens diariamente.
Já na França e em boa parte da Europa, a questão da migração e da integração de contingentes populacionais oriundos das suas antigas colônias põe em cena problemas como o racismo. Assim, no futebol, a presença de jogadores negros não apenas nos clubes como na seleção nacional coloca para a sociedade a questão de sua própria auto-imagem.


BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA é professor no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (RJ)


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