São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

Texto Anterior | Índice

MELCHIADES FILHO

A Copa com a alma do torcedor

Para muitos, sobretudo os europeus ocidentais, foi a Copa da arbitragem, do juiz ladrão, dos subterrâneos da Fifa. A Copa ilegítima. O que é uma injustiça, pelo menos até que se comprove um esquema de manipulação de resultados.
O apito sempre falhou. A "mão de Deus" no gol de Maradona em 1986, a bola inglesa que (não) entrou no gol alemão em 1966, o pênalti-convertido-em-falta de Nílton Santos em 1962...
Sim, os árbitros capricharam neste ano, a TV cada vez mais aparelhada para flagrá-los "no pulo". Mas a verdade é que a gritaria se deve muito porque os erros derrubaram as seleções da Itália e da Espanha, as duas maiores potências do futebol de clubes -e as duas imprensas esportivas mais atuantes do planeta. Alguém falaria em "Copa ilegítima" se tivessem caído pelo apito times menos cotados como a Eslovênia e a Dinamarca?
Para outros, mais românticos, esta foi a Copa das zebras, do conto de fadas. Citam o tropeço da França diante do Senegal. A eliminação da Argentina logo na primeira fase. A implosão de Portugal. O avanço de turcos e sul-coreanos às semifinais.
Mas o insólito também faz parte da antologia do esporte, não é novidade deste Mundial. Os coreanos tinham derrubado a Itália em 1966. Os camaroneses já haviam colocado a África no mapa da bola em 1990. A pouco cotada Bulgária chegou à semifinal em 1994. Façanha repetida, quatro anos depois, pela Croácia, ainda dizimada pela guerra civil.
Para outros analistas, foi a Copa da globalização, da homogeneização das táticas, do fim das diferenças. A Suécia joga igual à França, que joga igual à Espanha, que joga igual à Costa Rica...
Talvez seja melhor esperar que as coisas decantem um pouco mais, como propôs neste caderno Carlos Alberto Parreira. Afinal, os empolgados que haviam anunciado a revolução dos "nanicos" se requebram até agora para justificar que a decisão em Yokohama tenha reunido justamente as potências históricas do futebol, Brasil e Alemanha.
A primeira Copa do Mundo na Ásia. A primeira Copa organizada por dois países. A primeira Copa do século 21. A primeira Copa itinerante (ou "caramujo", como definiu a comissão técnica da CBF, inconformada com o rodízio das cidades). A primeira Copa pós-João Havelange. A Copa da arbitragem, a Copa das zebras, a Copa da globalização.
Mais do que tudo isso, este foi o Mundial da comoção. Quem teve a saúde, a força, a diligência de varar as madrugadas e as manhãs de junho pôde relembrar o que o futebol clubístico paulatinamente deixou de oferecer no Brasil, tamanha a desmoralização dos torneios nacionais.
Foi impossível não torcer pelos senegaleses diante dos antigos campeões do mundo. Assim como foi impossível não torcer, nem que dissimuladamente, pela reabilitação do supercraque Zidane.
Foi impossível não vibrar com os sul-coreanos na primeira fase, ainda mais diante do espetáculo de seus neotorcedores nas ruas vermelhas de Seul. Assim como foi impossível não torcer contra os sul-coreanos após a "marmelada" que abateu os espanhóis.
Foi impossível, por mais primitivo, não torcer contra os argentinos, contra a soberba do técnico Marcelo Bielsa. Do mesmo modo, foi impossível não torcer para que os italianos, no mínimo, tivessem os cabelos empastelados.
E, principalmente, foi impossível passar impávido pelos jogos brasileiros. Emoção que, em 1998, apareceu só no fantástico empate contra a Holanda, na semifinal.
Neste ano, não, todo jogo balançou. O desespero com a zaga na fase de classificação. A angústia com o vaivém da equipe, sempre uma surpresa na escalação. A alegria pela recuperação de Ronaldo, pela confirmação de Rivaldo. A satisfação com o jogo redondo contra os ingleses. A raiva pelo gol de bico contra os turcos na semifinal. Com Scolari, foi sempre assim. Doeu gostoso.


Texto Anterior: Coréia 6 x 0 Japão
Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.