São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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as diferenças

Projeto nacional separa Índia e China do Brasil

Asiáticos exigiram contrapartidas de investidores estrangeiros e organizaram sua adesão à ordem global; Brasil optou por modelo liberalizante

GILSON SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Definida como inevitável e irreversível, a globalização reservaria ao Estado Nacional um papel, no máximo, coadjuvante. Não é o que ensinam as duas grandes potências médias vitoriosas na globalização dos últimos 25 anos, China e Índia. Vencem porque têm projetos estratégicos, estatais ou nacionais, de desenvolvimento.
O capitalismo organizado é o grande vencedor na guerra da globalização. As redes produtivas e de relacionamento de chineses e indianos, na Ásia e no Ocidente anglo-saxão, garantem a identificação e a exploração de oportunidades de investimento, colaboração e negociação. Os chineses já são o segundo domínio lingüístico mais populoso na internet, depois do inglês (língua em que um número significativo de indianos tem fluência exemplar).
Na China e na Índia houve controle, seleção e exigência de contrapartidas nos processos de abertura e transnacionalização de capitais produtivos e financeiros. Abriram mão de modelos autóctones sem perder o compromisso com a autonomia do Estado nacional e de suas elites. Focaram no longo prazo. Organizam (e em muitas vezes até hoje retardam) sua adesão à ordem global.

Projetos nacionais
China e Índia também encarnam projetos nacionais de desenvolvimento com fortes componentes de segurança ou de controle social (ditadura militar na China). Souberam forçar negociações comerciais e econômicas com investidores e mercadores (as tarifas sobre importações na Índia são o triplo da média brasileira).
Os dois países saíram da dependência colonial e, em pouco mais de 50 anos, conseguiram dominar a tecnologia nuclear e a eletroeletrônica.
O Brasil também tem projeto, mas não é nacionalista nem estatista, características dos modelos indiano e chinês. É liberalizante desde a crise do petróleo no fim dos anos 1970. É conduzido por elites econômicas (inclusive sindicais) em cujo DNA predominam o capital global e o capital nacional subsidiado pelo Estado.
As elites chinesas e indianas carregam no seu DNA o aprendizado de vários e longos ciclos de dominação regional e imperial. No Brasil, a elite desde a colônia sempre foi integrada à metrópole ("globalizada" desde o século 16) e com forte vocação para atender aos imperativos do centro.
O jeitinho brasileiro produz uma reciclagem contínua e sempre parcial da miséria nacional, num caldo de cultura individualista e ocidentalizado. O projeto liberal brasileiro convive bem com a malandragem e a corrupção. A exclusão é permanentemente realimentada, mas há mobilidade, oportunidades, dinamismo, novos ricos e novos negócios nas esferas pública, privada e do terceiro setor.

Estado forte
Tanto Índia quanto China têm Estados com forte viés militar e estratégico (como ocorreu, no século passado, no Japão). Políticas industriais, científicas e tecnológicas são executadas com determinação e flexibilidade. A mão pesada e visível do Estado implementou receitas de desenvolvimento de longo prazo associadas sempre a um projeto de inserção na ordem mundial.
A China era comunista, a Índia, socialista. Ao se abrir para a globalização, cada uma soube a seu modo implementar um capitalismo organizado. O desenvolvimento igualmente excludente, mas organizado, em mercados consumidores gigantescos supera os riscos políticos e atrai investidores de todo o mundo. China e Índia têm atravessado incólumes os solavancos da economia de "cassino" desde os anos 1990.
Gurus como Clyde Prestowitz apontam diretamente para a emergência de 3 bilhões de trabalhadores equipados com o capital intelectual necessário para competir em escala global. Os camponeses (65% da população na Índia, 50% na China) são fonte quase inesgotável de ganhos de produtividade.

Espírito empreendedor
O espírito empreendedor, inquiridor e inovador de chineses e indianos também é exemplar. Os sucessos da Índia e da China mostram a força crescente, na era da globalização multicultural e pasteurizadora, dos "espíritos nacionais" que animam projetos de Estados e nações.
Mas nem tudo favorece igualmente China e Índia em detrimento do Brasil. Índia e Brasil se aproximam quando o tema é a violência da exclusão.
Nem tudo é empreendedorismo e teletrabalho, desenvolvimento de software e comércio eletrônico. Na Índia, massacres sanguinários são freqüentes. O racismo é latente numa sociedade marcada pela diversidade e opressão étnica e a extrema desigualdade.
Nas cidades da Índia, a miséria se esparrama por todos os lugares, tudo é periferia, com exceção das áreas governamentais, protegidas por forte aparato militar. O país avança e se desenvolve, mas às vezes perdem nitidez as fronteiras entre riqueza e miséria, beleza e horror, progresso e ruína, novo e antigo, segurança e terror.
Só cerca de 1 milhão de indianos são diretamente beneficiadas pelo "boom" das tecnologias de informação, num país com 1 bilhão de habitantes.
China e Índia destacam-se, cada vez mais, como celeiros do capital intelectual que hoje define as fronteiras do desenvolvimento econômico.
O campo em que o Brasil se destaca é no sucesso da receita de estabilização ortodoxa, que ficou como exemplo de ajuste externo eficiente associado a reformas de longo prazo.

Riscos macroeconômicos
Enquanto o quadro macroeconômico avança no Brasil, na China, que desafiou até hoje sucessivos abalos financeiros globais, a economia corre risco de mergulhar num abismo cambial e financeiro. Suas reformas não andam. A Índia também muda devagar os seus marcos regulatórios e sua economia convive com incerteza jurídica e institucional.
As estatísticas mais recentes revelam um crescimento econômico acelerado que ameaça sair de controle na China. As reformas são tímidas e lentas. Os riscos macroeconômicos crescem por razões estruturais.
O cenário macroeconômico de longo prazo, no Brasil, apresenta um risco menor -ainda que a política econômica funcione para atrair sobretudo capitais externos de curto prazo, as célebres e voláteis "andorinhas" especulativas. Enquanto isso, a economia cresce em passo de tartaruga, mesmo com um cenário externo favorável como não se via há anos -justamente pelo crescimento de China, Índia e EUA, que sugam e estimulam a produção global de alimentos a aviões.
Em junho, a produção industrial na China subiu 19,5% em relação ao ano passado. É o maior índice já registrado na história do país, puxado por investimentos e exportações, que respondem por cerca de 80% do PIB.
Não há segurança ou confiabilidade com relação a informações financeiras relacionadas à sustentação desse processo de crescimento. Japão e Coréia do Sul, países que se beneficiaram de ondas gigantes de investimento direto estrangeiro em processos de reconstrução e infra-estrutura, chegaram no máximo a níveis de investimento da ordem de 40% do PIB. A taxa de investimento da China deve passar de 50% do PIB em 2006.

Controle
Ao tentar o controle da onda expansionista, o governo chinês pode errar a mão e induzir o sistema a uma crise de excesso de oferta, de capacidade ociosa, colocando em risco o inflacionado mercado de crédito nacional.
A China ainda não conseguiu montar um sistema eficiente de política monetária, sistema bancário e mercado de capitais. Teme-se que o país não tenha os meios para gerenciar uma crise de superprodução.
No Brasil, a discussão sobre metas inflacionárias está na segunda casa decimal da meta estabelecida para daqui a dois anos, o que mostra como evoluímos nessa área. Em compensação, o país há três décadas não tem um projeto nacional de desenvolvimento e a reforma estratégica do Estado mal começou.
Comparado aos sucessos de China e Índia, o Brasil optou pela ênfase na estabilização de preços, tornando-se retardatário no relógio da mudança econômica mundial.


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