São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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24.abr.06/Associated Press
Artista de rua faz malabarismo em Anjuna, cidade litorânea localizada em Goa


receita indiana

Bomba atômica e alto crescimento projetam Índia como nova potência

Bangalore floresce com exportação de serviços tecnológicos, enquanto o resto do país assiste, em desespero

AMRITA NARLIKAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ÍNDIA PARECE estar realizando sua há muito aguardada ascensão como potência. Nas primeiras quatro décadas de independência, as percepções populares no país e no exterior descreviam a Índia como um gigante trôpego, cujo desenvolvimento sofria severas restrições em função da extrema pobreza e do baixo crescimento.
Hoje, esse quadro mudou. O índice de crescimento de 8% ao ano está entre os mais altos do mundo, e o país assumiu posição central no cenário diplomático internacional.
Ao lado do Brasil e da China, a Índia é freqüentemente convidada às conferências do Grupo dos 8 (G8). Também é parte do Grupo dos 20 (G20) que reúne ministros das Finanças e dirigentes de bancos centrais.
Na OMC (Organização Mundial do Comércio), a importância da Índia é reconhecida não só por meio de sua presença na maior parte dos comitês consultivos, mas por sua participação (em companhia do Brasil) no grupo conhecido como "Cinco Partes Interessadas".
Os testes nucleares indianos em 1998 marcaram o início de uma nova era: essa demonstração de poderio bruto não tinha precedente no caso de um país que foi pioneiro na defesa dos ideais de desarmamento.
O acordo nuclear entre Índia e EUA (ainda que não tenha sido ratificado pelo Congresso norte-americano até o momento) legitima a capacidade nuclear que o país acaba de desenvolver. E com os EUA cultivando relações mais estreitas com o governo indiano, a Índia parece enfim ter atingido a posição prevista para o país.

Fatores da ascensão
O orgulho do país por sua civilização milenar, seu regime democrático, seu papel -atual e futuro- na região, seu status como potência nuclear declarada e seu crescimento contribuíram para levar a Índia ao posto de protagonista de primeira ordem no sistema internacional.
Admita-se que não há nada novo na alegação de que a importância da civilização indiana deveria garantir a presença do país nos assuntos mundiais.
Os quatro fatores restantes contribuíram de maneira significativa para que essa ambição pudesse ser concretizada. Primeiro, embora a democracia indiana remonte à independência do país, em 1947, as credenciais democráticas adquiriram hoje valor consideravelmente maior no sistema internacional. É a essa característica que os políticos tanto indianos quanto norte-americanos se referem ao classificar os dois países como "aliados naturais".
Segundo, mesmo que tanto os EUA quanto a Índia evitem caracterizar a melhora em suas relações como uma aliança contra a China, há motivos confiáveis para o argumento de que a tentativa norte-americana de cultivar aliados na região tem por objetivo estabelecer um pólo que contrabalance o poder dos chineses.
Terceiro, é interessante apontar que os testes nucleares de 98 poderiam ter conduzido a severas e duradouras sanções da comunidade internacional. O fato de a Índia ter escapado incólume de sua decisão de conduzir os testes se baseia em parte no seu histórico imaculado de prevenção da proliferação nuclear, mas também em sua disposição de agir como uma potência responsável quanto ao uso de armas nucleares, bem como nas credenciais democráticas do país.
Por fim, o crescimento tornou a Índia um mercado atraente para investimento e exportação e uma fonte de serviços de baixo custo para o exterior. No contexto atual, a Índia parece ter muito em seu favor. Mas será que já é mesmo hora de abrir o champanhe?
Existem dois motivos para cautela. Primeiro, é importante ter em mente que, mesmo que a ascensão da Índia como potência possa parecer súbita e dramática, ela é produto de um processo longo e gradativo. Isso tem implicações políticas: nem todos os sucessos recentemente conquistados são produto de políticas dos últimos 15 anos, e nem todas as políticas da era precedente deveriam, portanto, ser abandonadas.

Obstáculos
Segundo, a Índia não se pode permitir complacência. Continuam a existir obstáculos a superar se o país pretende realizar plenamente seu potencial.
O sucesso atual da Índia têm raízes no passado e isso fica claro até mesmo no desempenho econômico do país. Estudiosos como Dani Rodrik e Arvind Subramanian argumentaram que o surto de crescimento da Índia não se origina das reformas econômicas iniciadas em 1991, mas sim do começo dos anos 80: "O aprendizado gerado pelo regime político anterior e a moderna base manufatureira criada dessa forma estabeleceram um ambiente favorável à futura decolagem, assim que a postura política com relação ao setor privado foi abrandada".
Também é importante ressaltar que o processo de liberalização econômica, diferentemente do que aconteceu em muitos países da América Latina, foi cauteloso e gradual. Assim, a Índia conseguiu, até agora, evitar algumas das instabilidades extremas que afligiram outras economias nos países em desenvolvimento.
Se as experiências passadas vieram a colocar a Índia no caminho do crescimento, o poderio nuclear tem suas origens na era de Nehru. Sob o governo de Nehru e a direção de Homi Bhabha, um cientista treinado na Universidade de Cambridge que comandou o programa nuclear, o país construiu a infra-estrutura nuclear necessária.
A despeito de seu compromisso para com o desarmamento, a Índia conduziu sua "explosão nuclear pacífica", em Pokhran, em 1974. Os testes de 1998 representaram a culminação de investimentos passados e de desenvolvimentos científicos e tecnológicos.
Por fim, as estratégias de negociação diplomática da Índia foram desenvolvidas ao longo de meio século de ativismo internacional em áreas diversas.
Como líder do Terceiro Mundo, por meio do movimento dos países não alinhados, na Assembléia Geral da ONU, e no G77 da Unctad (Conferência de Comércio e Desenvolvimento das Nações Unidas), a Índia adquiriu considerável respeito como "voz dos silenciosos" e como líder dos países em desenvolvimento.
Ao contrário de muitos de seus aliados na OMC, os indianos resistiram à agenda do Ocidente, mesmo em ocasiões em que se viram isolados nas negociações (por exemplo, na quarta conferência ministerial da OMC, em Doha, 2001). Essa postura dura teve certo custo para a Índia no curto prazo, mas também ajudou a construir a reputação do país como negociador rígido, confiável, honesto e quase idealista.
É verdade que a Índia parece bem estabelecida em seu percurso para o poder. Mas há diversos perigos que podem afastá-la de seu caminho.
O maior deles está no nível doméstico. Bangalore e Hydebarad, pequenas ilhas que exportam certos serviços, florescem, enquanto o resto da Índia assiste, em desespero.
Mesmo nas grandes cidades, como Déli, a infra-estrutura é precária. É irônico que a ascensão no número de usuários de celulares seja acompanhada da deterioração em serviços básicos, como a provisão de água potável ou eletricidade.
Os índices de crescimento ascendentes não foram acompanhados da redistribuição de riqueza aos mais pobres. A desigualdade é enorme e grassa o descontentamento, especialmente em setores cruciais como a agricultura. Devido às dificuldades financeiras agudas, há fazendeiros cometendo suicídio em todo o país.
Pobreza e corrupção extremas geraram repercussões violentas. A Índia pode ter adquirido prestígio sem precedentes no exterior, mas não vem conseguindo atender às necessidades de seus cidadãos mais pobres e carentes.
As implicações podem ser muitas e severas. Problemas de infra-estrutura e a elevação no índice de insolvência podem afetar os atrativos da Índia para os investidores estrangeiros. Ainda mais sério poderia ser o impacto desses problemas sobre a sobrevivência de governos nacionais e locais e na sua credibilidade junto aos parceiros de negociações no exterior.
Por fim, a Índia está de muitas maneiras caminhando no fio da navalha. Seu poder e prestígio atuais derivam em parte de sua posição de liderança no Terceiro Mundo.
A nova Índia vem adotando posições menos rígidas e demonstrando maior disposição de dialogar com países aos quais sempre expressou oposição nos fóruns internacionais.
Ao mesmo tempo, a Índia está comprometida com coalizões como o G20, na OMC, e se esforça por preservar e reforçar suas alianças com países do Terceiro Mundo. Trata-se de um difícil malabarismo. Mas será preciso sustentá-lo se a Índia deseja continuar sua ascensão como potência.


AMRITA NARLIKAR é professora do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Oxford. É formada em Relações Internacionais pela Jawaharlal Nehru University, de Nova Déli e foi professora visitante na Universidade Yale.


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