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Qual é o futuro da novela?

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA


A ECONOMIA NÃO explica tudo. Em um país de poucos letrados, a TV exerce um fascínio especial. Já nos anos 70, a presença de aparelhos televisivos em residências precárias e barracos de favela que ainda não possuíam geladeira chamava a atenção.

Nos anos 90, uma exposição de decoração de classe média alta contava com um aparelho televisivo em cada cômodo, incluindo banheiros, cozinha, dormitórios, sala de estar, escritório e salão de chá. No ano 2000, é comum encontrar moradias _sejam elas mansões ou casas de autoconstrução_ equipadas com mais de um aparelho.

No Brasil, novela e televisão são termos indissociáveis. Novelas existem na televisão brasileira praticamente desde o seu começo. A primeira é de 1951. Mas a consagração do gênero não foi imediata. Só na década de 70 a novela alcança a posição de programa mais assistido e mais lucrativo da TV brasileira. Nos anos 80, o sucesso da versão eletrônica do folhetim do século 19 ganha dimensões de “fenômeno midiático”.

Apesar de serem feitas para um público-alvo de mulheres, as novelas dominam o horário nobre, seis noites por semana, de uma das maiores indústrias televisivas do mundo e atingem um público nacional composto de homens e mulheres de todas as idades e classes sociais.

Como explicar o fascínio coletivo por um gênero que encarna algumas das piores características da cultura de massas? Como telespectadores se apropriam e interagem com o “sistema” da novela de televisão? Em épocas de diversificação de meios e canais, qual o futuro de um gênero que se consolidou como um “repertório compartilhado” por pessoas dos mais diferentes segmentos sociais?

A novela pauta a conversa entre vizinhos, a troca de idéias entre patrões e empregados, o programa dos pais com os filhos, o debate entre colegas de trabalho. Assistir e especular sobre o significado e os próximos acontecimentos da novela são rituais diários compartilhados por milhares de brasileiros. Fãs mais assíduos, além de seguirem fielmente os capítulos diários, se informam por meio da imprensa especializada e dos programas de rádio, participam de enquetes, consomem moda, usam gírias. Fãs menos assíduos não deixam de acompanhar o mínimo necessário para não perder o fio da meada da história. Há os que fazem questão de execrar o gênero, mas que, após o primeiro choque, revelam conhecimento detalhado das tramas.

É possível traçar um paralelo entre a produção de “comunidades nacionais imaginárias”, nos termos de Benedict Anderson, na Europa do século 19, em torno da imprensa escrita, e a novela no Brasil. Novela é torcida. Ao expressar seu conhecimento e opinião sobre o que se passa na novela, telespectadores demonstram que estão “por dentro”.

Repertório comum a pessoas dos mais diversos tipos e cores, as novelas constituem material privilegiado para o tratamento de assuntos polêmicos. Em São Paulo, telespectadores avaliam a trama e os personagens de novela de acordo com seus dramas pessoais. É como se o folhetim popular fornecesse a chave para legitimar o tratamento público de dramas que marcam o cotidiano instável da vida na megalópole.

Chefes de família que se sentem ameaçados, casais que se espancam, mulheres separadas, gays que assumem a sua identidade, meninos e meninas adolescentes que sonham com a “transformação” e a “liberação” pessoal, torcem por uns personagens e não por outros. Ao manifestar sua opinião, esses telespectadores-cidadãos-consumidores estão se posicionando diante de tensões que as novelas retiram do domínio privado próprio das alcovas e legitimam como temas que merecem tratamento público.

A comunidade imaginária da novela não se faz em torno de conteúdos ideológicos _sobre os quais há polêmica. Ela se faz em torno de formatos e convenções de um gênero que inclui um modo de feitura que capta e expressa acontecimentos da conjuntura, alinhavando-os em uma estrutura dramática convencional.

Surgem (ou ressurgem) novelas em vários canais. Escrita enquanto está sendo produzida e transmitida, a novela acena com a possibilidade de que os autores incorporem “a opinião do pessoal”. Acena de maneira muito mais indireta que os programas de auditório ou os “shows de realidade”.

A diversificação dos meios e formatos radicaliza a promessa de participação no mundo do espetáculo, valoriza a interatividade e a segmentação, minando o terreno da novela, que já foi tão dominante.


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