São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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A vez dos Pampas Com Scolari, enfim o Rio Grande do Sul pode ter um treinador à frente da seleção em um Mundial
FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A MONTEVIDÉU

PAULO COBOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A seleção do gaúcho Luiz Felipe Scolari faz sua estréia hoje à tarde. E não poderia haver adversário mais familiar ao novo treinador do Brasil do que o Uruguai. Não importa o resultado em Montevidéu: se alguém vencer, triunfará o futebol dos pampas.
Nascido em Passo Fundo, Scolari, se levar o Brasil à vitória, dará um enorme passo para ser o primeiro treinador gaúcho a comandar a seleção em uma Copa do Mundo, feito um tanto tardio, considerando a tradição do Rio Grande do Sul como escola de bons treinadores.
O estilo "pampeiro" de jogar bola, condensado pelo trinômio garra-força-superação, encontra em Scolari sua mais perfeita tradução, mais até do que em antecessores ilustres, como Oswaldo Brandão e João Saldanha.
Em seus tempos de zagueiro, o atual técnico da seleção rodou o interior do Rio Grande do Sul atuando em times medianos -fora do Estado, defendeu apenas o CSA, de Alagoas.
Scolari sabe bem o que é um campo encharcado, o frio que gela os ossos, a dividida que beira a violência, a catimba.
É um "brasiguaio" da bola, e não esconde de ninguém. "Para mim não existe rivalidade com os uruguaios. Gosto daquele pessoal. Nasci na fronteira, ali perto. Sei me dar com eles", admite.
Sua filosofia reflete no grupo de atletas que chamou. Ao comentar a possível escalação dos volantes gaúchos Emerson e Fábio Rochemback, disse o técnico: "Eles estão acostumados a jogar no barro, no campo molhado".
O ex-volante Dunga, capitão da seleção tetracampeã mundial e maior ícone do futebol guerreiro dos pampas na última década, considera essa familiaridade um trunfo brasileiro para hoje.
"Jogar contra o Uruguai é sempre difícil, mas o Felipão está acostumado. É um estilo parecido com o gaúcho. A gente brinca que é a escola da fronteira, com muita marcação e garra", afirma.
Os primórdios dessa escola ajudam a explicar o perfil de Scolari. É impossível contar a história do futebol gaúcho sem mencionar os vizinhos platinos, Uruguai e Argentina -mas principalmente os adversários de hoje.
O intercâmbio entre uruguaios e gaúchos remonta ao início do século. O Rio Grande, clube mais antigo do Brasil, em 1911 já enfrentava, em amistoso, a seleção "Celeste". Em 1913, o Grêmio foi goleado pelos uruguaios do Bristol por 7 a 1 em Porto Alegre.
Em 1920, na segunda edição do Campeonato Gaúcho, o Guarani de Bagé tinha quatro uruguaios em seu elenco: o capitão Granja, Ruival, Seixas e Greco.
Quando o Internacional foi campeão gaúcho pela primeira vez, em 1927, o centroavante era o uruguaio Donaldo Ross.
O primeiro estrangeiro a defender o Grêmio foi também um uruguaio, Artigas, em 1931.
Na década de 40, época do lendário "rolo compressor" do Inter, hexacampeão de 40 a 45 e bi em 47/48, o time teve três técnicos uruguaios: Carlos Rolante, Felix Magno e Ricardo Diaz.
Nos anos 60 e 70, os rivais gaúchos disputavam craques do país vizinho. Em 68, o Grêmio tirou o atacante Oyarbide, do Peñarol; o Inter então trouxe Urruzmendi, do Nacional. Em 71, a defesa foi priorizada: o Grêmio saiu na frente e contratou Ancheta ao Nacional; o Inter descontou e levou ao Beira-Rio aquele que ficaria conhecido como o maior zagueiro da história do clube, Figueroa, que era chileno, mas foi revelado pelo Peñarol e tinha como poucos o "espírito dos pampas".
Em Montevidéu para acompanhar a partida de hoje ("Vim só pelo prazer de ver o jogo"), Figueroa diz que o Uruguai lhe ensinou "a malandragem e a garra", características que ele considera ter aprimorado no futebol gaúcho, "junto com a técnica".
Um pouco mais tarde, o uruguaio Hugo De León marcou a história do Grêmio ao liderar o time no título da Libertadores-83.
"Como estamos perto deles, sempre jogamos muito com eles e contra eles, e não somente Inter e Grêmio, mas todos os clubes do interior. A gente diz que o futebol gaúcho tem alma castelhana, de times que não se entregam nunca, jogam até o fim pelo resultado", diz o pesquisador e jornalista Cláudio Dienstmann, autor de cinco livros sobre futebol gaúcho e brasileiro.
As interpretações para o estilo gaúcho de jogar costumam convergir para a vizinhança com uruguaios e argentinos, mas, a partir daí, ganham desdobramentos.
Grande conhecedor dos dois lados da fronteira, o ex-zagueiro Ancheta, 52 anos, uruguaio naturalizado brasileiro desde 75, fala em origens raciais.
"Isso vem de uma tradição de sangue, dos charruas", afirma, lembrando os nativos uruguaios, índios nômades e guerreiros que acabaram dizimados pelos colonizadores espanhóis.
"Aqui nessa região se nasce com essa vontade de lutar, de não perder nunca. Posso até perder, mas só se passarem por cima de mim", diz o ex-jogador.
No caso dos gaúchos, à influência charrua somou-se o sangue europeu dos imigrantes italianos e alemães, raçudos mas "cintura-dura", sem a habilidade típica do futebol brasileiro. Algo que gerou outros fenômenos, como o racismo -o Grêmio, por exemplo, foi o último grande clube do Brasil a contratar um jogador negro, o atacante Tesourinha, em 1952.
Ancheta, eleito o melhor zagueiro da Copa-70, capitão do Grêmio de 71 a 79 e hoje cantor de boleros com dois CDs gravados, não hesita em definir: "O futebol gaúcho é mais uruguaio do que brasileiro".
A valorização da preparação física, característica do trabalho de Scolari, é outra tradição local. Seu pioneiro foi Osvaldo Rolla, o Foguinho, jogador e técnico que fez história no Grêmio. Em 54, Foguinho, então técnico do Cruzeiro-RS, fez com o time uma excursão à Europa, de onde trouxe o conceito de futebol-força, então em voga no velho mundo. Seus métodos de preparação -fazia os jogadores subirem as arquibancadas do Olímpico com um colega nas costas e marcharem cantando o hino do Grêmio, entre outros- até hoje correm o Rio Grande.
Quem também teve papel importante na ênfase ao condicionamento físico foi um dos mestres de Scolari no futebol, o gaúcho Carlos Froner, 82, que treinou no Caxias, em 1978, o atual técnico da seleção brasileira. "Em 64, no Grêmio, introduzi o primeiro preparador físico do futebol gaúcho, o coronel Mário Doent", lembra o capitão da reserva Froner -até então a função era acumulada pelos treinadores.
"Praticamos o futebol guerreiro. Honesto, porém enérgico."

Colaboraram João Carlos Assumpção, do Painel FC, e Sérgio Rangel, enviado especial a Teresópolis

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