São Paulo, segunda-feira, 01 de julho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Após saga atrás de bilhete, primeiro brasileiro a entrar no estádio se emociona ao ver a seleção ao vivo

Higa um brasileiro

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A YOKOHAMA

Com vergonha de chorar, o brasileiro segurou as lágrimas ao lado da mulher, da filha e dos amigos.
A mulher chorou, como numerosos torcedores à sua volta, desde o primeiro gol.
Muitos outros choraram nas cadeiras do International Stadium Yokohama quando o jogo terminou, e a seleção conquistou o pentacampeonato.
Em campo, Denílson começou a chorar copiosamente assim que o italiano Pierluigi Collina apitou o fim da partida.
Companheiros seus choraram.
Na entrevista pós-jogo, o técnico Luiz Felipe Scolari tentou a custo conter o pranto.
O brasileiro gritou tanto que, mesmo antes de a decisão acabar, já estava rouco no setor de categoria 3 do estádio (US$ 300 o ingresso). Pouco mais de uma hora depois, falava com esforço pelo celular cuja bateria se esgotava.
Ele caminhava para a estação ferroviária de Shin-Yokohama. Pegaria o trem para Tóquio, onde deixou o carro. Em seguida iria para casa em Ibaraki, região do time do Kashima Antlers.
O brasileiro é Denísio Higa (pronuncia-se ""Riga"), 27, nascido em Campinas e criado em Artur Nogueira, uma pequena cidade do interior paulista entre Mogi Mirim e Limeira.
Nunca tinha ido a um jogo da seleção. ""Nem amistoso." Do seu clube, o São Paulo, também não. Veio para o Japão em 1992.
Abandonou os estudos e deixou para trás a vida na roça. Bicos no cultivo de laranja lhe rendiam um dinheiro que reforçava as finanças magras.
Hoje cumpre jornadas de 12 horas numa fábrica de produtos de borracha. Ajuda a mãe e quatro irmãos -dois doentes e dois desempregados- que moram com ela no Brasil.
Às 5h40 de ontem, Higa, a mulher, Teresinha Tiomatsu da Costa, 27, e a filha, Karine Higa, 5, foram os primeiros brasileiros a chegar ao estádio para a final.
Com 11 amigos, saíram três horas antes de Ibaraki. Enquanto os portões não abriram, por volta das 17h, comeram pastéis de carne, queijo e frango com catupiry vendidos num caminhão por ali. ""A noite foi de frio e sono", contou Higa depois.
Pela terceira noite consecutiva, ele não dormiu. Ocupou as anteriores com a caçada a bilhetes para a final. O amigo Henrique Suzuki, 23, já tinha resolvido parte dos problemas.
Nascido em Curitiba e também morador de Ibaraki, onde é operário numa fábrica, Suzuki foi para Tóquio na quinta-feira.
No dia seguinte seriam oferecidas, somente para brasileiros, entradas que sobraram.
O paranaense entrou na fila às 14h de quinta, atrás de 500 compatriotas. Às 9h30 de sexta, sem ter pregado os olhos, comprou dois bilhetes por cada passaporte que apresentou.
Quando o grupo completou a viagem, sentando-se numa passarela sobre um riacho diante do estádio, já amanhecera. ""Desde pequeno sonhava ver um jogo da seleção. No Brasil, não poderia. Aqui, trabalhando, se consegue", afirmou Higa.
Às 14h32 de ontem, foi fácil encontrá-lo. O repórter foi para o começo da fila e perguntou alto: ""Quem é brasileiro aqui?". Ele, os parentes e os amigos estavam entre os primeiros, atrás de cerca de dez japoneses -todos decididos a torcer pelo Brasil.
Os brasileiros chegaram cedo com medo de problemas com os lugares, mesmo marcados nos ingressos. ""E japonês não fura fila, mas brasileiro, sim."
Cinco horas antes da final (20h em Yokohama, 8h em Brasília), quando Higa ainda estava na fila, o ingresso de categoria 2 (US$ 500 na origem) era negociado por cambistas a US$ 3.000 (R$ 8.400, considerando o dólar a R$ 2,80).
A cerimônia de encerramento da Copa começou às 18h25. Era noite. Os jogadores Belletti e Júnior foram ao gramado filmar. Às 19h25, a transmissão da TV, por acaso, exibiu para todo o mundo Higa na platéia.
No anúncio das equipes, comprovou-se com os ouvidos o que os olhos já denunciavam: a torcida pelo Brasil era esmagadoramente majoritária. Ronaldo, Rivaldo e Roberto Carlos foram ovacionados.
Na pose para a foto, em vez de só os titulares aparecerem, os reservas se juntaram. Com núcleos ativos empurrando o time, em contraste com a torcida passiva de outras partidas, a seleção brasileira jogou ""em casa". As atrasadas de bola alemãs para o goleiro Kahn eram vaiadas.
Aos 43 minutos do segundo tempo, com o triunfo consolidado em 2 a 0, os gritos de ""pentacampeão" tomaram o estádio.
No momento em que Cafu, tal qual uma estátua grega, ergueu o troféu, uma chuva de papéis dourados e de milhares origamis (dobraduras de papel) de várias cores caiu do alto.
No papel do origami estavam impressos o logotipo da Copa e a data da final. Uma relíquia para guardar. As dobraduras foram feitas no formato do Tsuru, um pássaro japonês que simboliza a felicidade e a longevidade.
""Não imaginava que fosse me sentir tão feliz", disse Higa, pelo celular, enquanto ia para a estação de trem e contava sua saga no estádio. ""Só ver a seleção foi um sonho realizado. Ela campeã, então, foi a glória."
Hoje ele não entraria na fábrica às 8h, como de costume, mas às 19h, para sair às 7h de amanhã.
""Vou chegar com mais moral por ser brasileiro. Sei que isso tudo vai entrar para a história do futebol. Mas vai entrar também para a minha história. Eu nunca vou esquecer."



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