São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Índio quer apito...


...e também bola, calção e chuteira, como mostra um belo livro sobre o futebol entre os xavantes

DE TODOS os mitos de origem do futebol, o mais gaiato deve ser o concebido por Mário de Andrade em "Macunaíma".
O herói construía um papiri (abrigo) junto com os irmãos Maanape e Jiguê quando estes resolveram se vingar de uma traquinagem sua.
Jiguê transformou um tijolo "numa bola de couro duríssima" e Maanape atirou-a contra o rosto de Macunaíma. "Esborrachou todo o nariz do herói."
De raiva, Macunaíma chutou a bola para bem longe, dizendo: "Sai, peste!". A bola caiu no campo.
O herói inventava ali o futebol, na visão do narrador uma das pragas nacionais, ao lado do bicho-do-café e da lagarta-rosada.
Como o futebol parece tão integrado ao solo brasileiro, é grande a tentação de buscar uma "origem autóctone" do esporte. Gilberto Freyre flertou com a idéia, ao apontar a "contribuição positiva do menino ameríndio aos jogos infantis e esportes europeus", o que abriu caminho para outros estudiosos mais afoitos especularem sobre um eventual surgimento do futebol por aqui, antes de rebater na Europa e voltar.
Seja como for, as relações entre os índios e o futebol são um tema fascinante e recorrente, que emerge na biografia romanceada do cafuzo Garrincha, no surgimento eventual de um futebolista indígena (como o xucuru-kariri Índio, lateral-direito do Corinthians bicampeão em 98-99) ou mesmo numa expressão como "atacar como um índio".
Com exceção da passagem de "Macunaíma", tirei essas idéias e informações de um livro extraordinário, "Boleiros do Cerrado - Índios Xavantes e o Futebol", recém-lançado pela editora Annablume.
O autor, o antropólogo Fernando de Luiz Brito Vianna, relata ali seu trabalho de campo (em mais de um sentido) entre os índios de uma aldeia xavante em Mato Grosso.
Ex-futebolista profissional com o nome Fedola, jogou no Juventus da Moóca e no Noroeste de Bauru , ele atuou junto aos índios como pesquisador, treinador, motorista e, ocasionalmente, até jogador.
Claro que o livro, baseado na tese de mestrado do autor, tem uma parte teórica um tanto árida para nós outros, que não somos versados em etnologia. Mas os relatos de Fedola sobre a vivência cotidiana do futebol pelos índios (os treinamentos, os torneios entre aldeias, as excursões à cidade, os projetos de profissionalismo) são deliciosos, emocionantes e iluminadores. O mais interessante de tudo é a discussão de como uma prática exterior à cultura xavante acaba sendo incorporada por ela e servindo até como elemento de afirmação de identidade.
É um processo análogo ao que ocorreu com o futebol no quadro mais amplo do país: importado da Inglaterra, acabou sendo visto como um dos meios mais poderosos de expressão cultural brasileira.
O livro de Vianna/Fedola comprova mais uma vez que não existe cultura "pura", estática, incontaminada, e que o futebol, ao ser abraçado entusiasticamente pelos povos mais diversos da Terra, serve como elemento de troca simbólica e de enriquecimento geral do humano.
Se é uma praga, como queria o criador de Macunaíma, então é uma praga às avessas, que fecunda e faz florescer.

jgcouto@uol.com.br



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