São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2000


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Nova versão de uma velha carta

JOSÉ ROBERTO TORERO

Querida, finalmente chegamos a algum lugar. Já não aguentava mais o balanço do navio. Vomitei feito uma grávida em toda a viagem. Não havia cabine para mim e tive que dormir no cavername. Ando pensando muito em ti e não vejo a hora de voltar para teus braços. E para as pernas. E para..., bem, é melhor parar por aqui.
Mas deixe-me contar-te o que aconteceu:
Finalmente aportamos numa ilha muito bela, agora nomeada de Vera Cruz. Atracamos a uns duzentos metros da praia. Então tomamos dum bote e fomos até a terra. Eu fiz questão de ir junto para ver se comia algumas frutas e melhorava meu estado. No mesmo bote, foram o capitão-mor Pedro Álvares, frei Henrique e, para remar, dois marinheiros, um de nome Lopo de Pina e outro chamado Cosme Fernandes. Quando demos à praia, não vimos ninguém, mas, olhando ao longe, percebemos uma poeira que levantava. Pé ante pé, fomos até lá.
Qual não foi nosso espanto quando chegamos a um enorme terreno muito limpo, onde havia uma grama cerradinha e mais de vinte selvagens correndo pelo campo. Curiosamente, uma metade usava cocares amarelos, e, a outra, vermelhos. Numa espécie de larga escadaria, o público se postava ao lado do gramado e gritava. Uns, pintados de amarelo, bradavam a plenos pulmões: ""Tupiniquins, tupiniquins!". Outros, tingidos de vermelho, berravam com todas as suas forças: ""Tupinambás, tupinambás!".
Ficamos escondidos sem que nos percebessem.
Então, reparando melhor, vi que os silvestres não corriam à toa, mas sim atrás de um crânio de macaco. Era de se admirar a maestria com que controlavam tal peça, conseguindo passá-lo de um pé a outro de tantas e várias formas que eu só podia crer no que via porque meus olhos não mentem como minha boca.
Vi depois que nos cantos opostos da clareira havia duas pequenas estruturas de traves com bambus e que os guerreiros tentavam colocar o crânio entre elas. No meio de tudo havia um outro selvagem, inteiramente pintado de preto, que segurava um animal verde. Quando um dos silvícolas se excedia em força numa disputa, o homem de negro apertava o pobre papagaio, que gemia um som agudo, e todos paravam. O crânio era colocado no local da infração e logo tudo recomeçava.
Foi quando alguns dos que gritavam tupinambás nos descobriram. Pensei que fossem nos matar, mas, como estávamos todos de carapuças vermelhas, acho que nos tomaram por seus amigos e foram muito gentis, nos levando para seu lado nas arquibancadas. Depois, por meio de sinais e gestos, nos fizeram entender que aquilo era um antigo ritual, uma espécie de batalha simulada que eles disputavam todos os anos.
Dessa vez, o ritual terminou dois a dois.
Os tupiniquins jogaram num 4-2-4 com Piquerobi; Paraguaçu, Taquaraí, Pindoba I e Peri; Guará e Guaramirim; Mogi, Jururu, M'Boi Guaçu e Pindoba II.
Os tupinambás, dos quais desde já sou torcedor, optaram por um 4-4-2 e foram a campo com Caoru; Itaquá, Cariri, Arabutan e Curumim; Tatá, Cucuia, Timpuama e Abaporu; Catinga e Ipioca.
Foi esse o nosso primeiro encontro com os naturais dessa terra. Mas amanhã, quando for escrever uma carta ao rei, farei uma versão um pouco diferente.
Um beijo daquele que é teu em alma, mas preferia sê-lo em corpo, Pero Vaz de Caminha.

E-mail torero@uol.com.br


José Roberto Torero escreve às terças e sextas-feiras

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