São Paulo, terça, 2 de junho de 1998

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MARILENE FELINTO

Em campo, bem no primeiro dia de menstruação

A cidade e as serras. A cidade é Paris, as serras são nossos mundos perdidos.
"A Cidade e as Serras" -"eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser: eis a civilização!'
Esse o livro, a frase de Eça de Queiroz que eu gostaria de ter escrito.
Mas não. Só se fala em "embaralhar sistema de cobertura dos zagueiros". O que é isso?
Jacinto (em "A Cidade e as Serras") se sentia assim: "Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome, nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva de um ramo".
Que sentimento de distância, de estar longe de tudo: um silêncio e uma distância.
É como ir dormir inteira e acordar menstruada.
Uma cólica distante e próxima, próxima e distante, vem aos pedaços.
O corpo meio pesado, meio zonzo. No lençol, na cava da calcinha, a mancha vermelha.
Dá vontade de levantar muito devagar, lavar-se, ir à igreja meditar, mesmo quando não se acredita em igreja.
"A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror", dizia Eça.
Lá fora, uma gritaria sem sentido. São os homens batendo bola, jogando o jogo.
Só se fala em dor muscular na virilha direita.
Só se fala no "volante", no "desarme"... a brincadeira que os homens tratam como coisa séria.
Era preciso que tivessem um dia só, um único dia de menstruação profunda.
Como falta profundidade aos homens.
Entrar em campo, no primeiro dia de menstruação.
Fiquei preguiçando na cama, relendo um romance de Eça de Queiroz -eu simplesmente não consigo dar importância a futebol.
Meu pai nunca deu. Nunca assistiu, nunca jogou, nunca discutiu futebol.
Os homens da minha infância -pobres, brutos, mas estudiosos- sempre se ocuparam de outras coisas.
Tinham pretensões aos altos postos da Aeronáutica, da Marinha.
Mas quem sabe não será esse, o da Copa de futebol na França, "o período esplêndido e soberbamente divertido do meu tédio", como também diria Eça de Queiroz.
Afinal, futebol é ilusão de brasileiro.
Afinal, "já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a vida, mesmo nas delícias mais triunfais, se resumia em ilusão".
Afinal, "tudo tende ao pó efêmero, em Jerusalém e em Paris!"



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