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MARILENE FELINTO
Em campo, bem
no primeiro
dia de
menstruação
A cidade e as serras. A cidade é
Paris, as serras são nossos
mundos perdidos.
"A Cidade e as Serras" -"eu
murmurei, nas profundidades do
meu assombrado ser: eis a civilização!'
Esse o livro, a frase de Eça de
Queiroz que eu gostaria de ter
escrito.
Mas não. Só se fala em "embaralhar sistema de cobertura dos
zagueiros". O que é isso?
Jacinto (em "A Cidade e as Serras") se sentia assim: "Estava aí
como perdido num mundo que
lhe não fosse fraternal; nenhum
silvado encolheria os espinhos
para que ele passasse; se gemesse
com fome, nenhuma árvore, por
mais carregada, lhe estenderia o
seu fruto na ponta compassiva de
um ramo".
Que sentimento de distância, de
estar longe de tudo: um silêncio e
uma distância.
É como ir dormir inteira e acordar menstruada.
Uma cólica distante e próxima,
próxima e distante, vem aos pedaços.
O corpo meio pesado, meio zonzo. No lençol, na cava da calcinha, a mancha vermelha.
Dá vontade de levantar muito
devagar, lavar-se, ir à igreja meditar, mesmo quando não se
acredita em igreja.
"A religião é o desenvolvimento
suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror", dizia Eça.
Lá fora, uma gritaria sem sentido. São os homens batendo bola,
jogando o jogo.
Só se fala em dor muscular na
virilha direita.
Só se fala no "volante", no "desarme"... a brincadeira que os homens tratam como coisa séria.
Era preciso que tivessem um dia
só, um único dia de menstruação
profunda.
Como falta profundidade aos
homens.
Entrar em campo, no primeiro
dia de menstruação.
Fiquei preguiçando na cama,
relendo um romance de Eça de
Queiroz -eu simplesmente não
consigo dar importância a futebol.
Meu pai nunca deu. Nunca assistiu, nunca jogou, nunca discutiu futebol.
Os homens da minha infância
-pobres, brutos, mas estudiosos-
sempre se ocuparam de outras
coisas.
Tinham pretensões aos altos
postos da Aeronáutica, da Marinha.
Mas quem sabe não será esse, o
da Copa de futebol na França, "o
período esplêndido e soberbamente divertido do meu tédio",
como também diria Eça de Queiroz.
Afinal, futebol é ilusão de brasileiro.
Afinal, "já há quatro mil anos,
na remota Jerusalém, a vida,
mesmo nas delícias mais triunfais, se resumia em ilusão".
Afinal, "tudo tende ao pó efêmero, em Jerusalém e em Paris!"
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