São Paulo, sexta-feira, 03 de abril de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

XICO SÁ

Tango para corações apunhalados

A frase de Maradona após a tragédia na montanha mágica de Evo Morales é o que difere o argentino do brasileiro na bola

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, muitas coisitas nos diferem dos argentinos, mas, nas tragédias ludopédicas, sin embargo, surge a mais estupenda das diferenças. Os hermanos se mostram desavergonhadamente passionais e buscam entender o revés muito mais pela alma do que pela técnica.
Nós instalamos imediatamente, torcedores e crônica esportiva, uma caça às bruxas. Eles fazem letra de tango à Gardel a cada frase, a cada desabafo de sofrimento. Repare na declaração de dom Diego Maradona, este gênio que carrega no seu encalço duas sombras permanentes, a da glória e a da tragédia. Disse o técnico, logo após a derrota: "¨Qué le puedo decir al hincha argentino? Que yo sufrí con ellos y que cada gol de Bolivia era un puñal en el corazón". Sim, o que posso dizer aos torcedores? Que sofri com eles e que cada gol era um punhal no coração. É ou não o país do tango pronto?
Já fomos tão passionais quanto o "lunário sentimental" do escriba Leopoldo Lugones, filho do rio seco de Córdoba. Hoje, porém, nos vemos cerebrais, tão poéticos quanto a prancheta com o desenho do 4-4-2. Com as derrotas históricas dos nossos times, na hora do despenhadeiro da Segundona, por exemplo, até que conseguimos beber uns tragos com a solitária azeitona do martírio dançando nas nossas bocas momentaneamente banguelas.
Vimos tal drama outro dia na queda e ascensão do Corinthians, com o abismo coral do Santa Cruz, com as despedidas de Fla e Flu da Libertadores, igualmente devorados pelo cabeludo monstro da soberba que costuma perseguir os falastrões e os conquistadores de véspera.
Após 1982, com o melhor futebol que uma seleção já exibiu desde a invenção da bola, transformamo-nos em um país de cricris e secadores de nós mesmos. Isso não ocorre com os argentinos, ainda mais com o deus Maradona no comando. Os hermanos estão chorando até agora o massacre que sofreram na montanha mágica dos xamãs de Evo Morales. Claro que tivemos razões de sobra para endurecer nossos corações, mas ficamos excesssivamente chatos, uns cobradores em plantão 24 horas, uns bedéis ludopédicos, umas madres superioras e enfezadas.
É pau no escrete canarinho sob qualquer hipótese, se ganha de 3 a 0, se empata na altitude e, óbvio, ainda mais, nas raríssimas derrotas.
Estamos como um velho reclame de uma cachaça de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, terra do Osman Lins: "Se o seu time ganhou... tome Pitu; se o seu time empatou, Pitu; se o seu time perdeu, Pituuuu". Claro que Edgar, meu estimado corvo, grasnava de prazer a cada flechada dos índios de Morales nos costados do inimigo do rio da Prata, mas o sentimento de Maradona, em forma de letra de tango, foi uma das coisas mais belas dos últimos tempos no gelado mundo dos pebolistas. Tragédia que embutia na humilhação histórica cheiro de sangue e de conquista da próxima Copa do Mundo. Time tem de sobra para tal fim, e dom Diego merece essa glória.
É, amigo, como cantava o velho Belchior, tenho 25 anos de sonho e de sangue e de América do Sul, mas, por força do meu destino, hoje, pelo menos hoje, comovido qual um Maradona, um tango argentino me pega bem melhor que um blues.
xico.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Vela: America's Cup terá mata-mata em 2010
Próximo Texto: Dívida faz Flamengo desistir da Petrobras
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.