São Paulo, quarta, 3 de junho de 1998

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CARLOS HEITOR CONY

Reflexões sobre bolso e coração

Quando o futebol foi profissionalizado, em 1933, muita gente deixou de frequentar os estádios. Na minha infância, encontrava esses caras que passaram a desprezar o futebol, considerando-o uma atividade de mercenários, como as guerras coloniais. Eu achava um exagero. Considerava normal que os jogadores ganhassem bons salários, recebessem luvas.
Mesmo assim, quando Didi emigrou do Fluminense para o Botafogo, estranhei que ele conseguisse jogar contra o time que defendera com tanta genialidade.
Fiquei sabendo que os jogadores, como qualquer ser humano, tinham o direito de ter um clube do coração e jogar por outro. Amor não enche barriga. Não me tornei reacionário como os ex-torcedores que renegaram o futebol em 1933 por causa do profissionalismo. Mas daí dizer que gostei, não gostei.
Deslocando o problema para as seleções nacionais, aos poucos estou sentindo aquilo que, numa análise injusta e apaixonada, num momento de cólera poderia considerar mercenários aqueles que jogam contra a seleção de seu país.
O mesmo Didi, que saiu do meu clube para outro, atuou numa Copa do Mundo como treinador do Peru. Agora, temos o caso de Parreira, que quatro anos atrás era treinador do Brasil e desembarcou em Paris, semana passada, como treinador da Arábia Saudita.
Ainda são poucos os jogadores estrangeiros nas seleções nacionais.
Um ou outro caso é explicado pela nacionalidade dupla ou por situações peculiares.
Mas resta o problema. Vai ser difícil, mas não custa imaginar uma final entre Brasil e Arábia Saudita. A obrigação de Parreira é vencer. Será um cretino se não fizer tudo para derrotar a mesma seleção pela qual se sagrou campeão na Copa dos Estados Unidos.
E seria mais cretino ainda se abrisse as pernas e deixasse o Brasil ganhar. A dicotomia entre o profissional e o patriota pode parecer abominável para o torcedor, que nunca pensa com lógica. Torce com emoção. Pessoalmente, sempre embirrei com os técnicos, considerava-os nefastos, sobretudo quando jogavam contra mim.
Lembro o argentino Stábile, artilheiro de uma Copa e mais tarde treinador da seleção de seu país que deu algumas surras no Brasil.
O paraguaio Solich até hoje é lembrado com devoção pelos flamenguistas. Mas o Paraguai não estava entalado em nossa garganta, ferindo o amor próprio nacional. Falou-se em contratar Stábile, mas houve reações. Num jogo entre o Fluminense e o Racing, por exemplo, como confiar num técnico de lá?
Reconheço que são reflexões românticas, essas que agora faço, no limiar de mais uma Copa. Futebol passou a ser empresa, ofício -e dos mais rendosos.
Já me habituei a tanta coisa estranha que mais uma não faz diferença. Repito o que disse em crônica de ontem: a globalização parece que começou no futebol. Trinta anos atrás já havia clubes na Colômbia e na Espanha que importavam os melhores craques brasileiros e argentinos.
O mundo tende a ser um só. E mais chato -se isso for possível.



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