São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2008

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XICO SÁ

Entre o chifre e a Segundona


Na roda de varões em meio a uma carne e cerveja, fica claro que é melhor ser traído no amor do que ver seu time cair

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, o que dói mais: uma traição amorosa ou a descida do seu time à Segundona? O cronista andarilho que vos escreve queria só uma cerveja gelada, antes do almoço da última terça, quando se deparou com a questão plebiscitária.
Homens ao redor de uma carne queimando, esse momento mais solene e pleno de testosterona, discutiam os destinos do Vasco e do Fluminense. Principalmente do tricolor das Laranjeiras, uma vez que estávamos em um bar colorido de encarnado, verde e branco, a sede dos fanáticos por futebol no bairro de Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo.
Não é preciso dizer que a primeira opção triunfou entre os comancheiros. Antes um bom par de chifres, qual um orgulhoso e destemido viking, do que o subsolo do campeonato. No meu silêncio respeitoso de forasteiro, ouvi a sentença daquelas criaturas. Para disfarçar, encobria o rosto com livro do Antonio Di Benedetto e escancarava um pendor melancólico. Fazia cara tipo Cuca, bom sujeito que tem sido castigado com uma temporada no inferno -do Botafogo para o Santos, do Santos para o emprego que perdeu ontem.
Claro que os unânimes balõezinhos sobre as cabeças daqueles homens piscavam um inevitável ""Ih, esse cara é veado". Mesmo que o livro fosse ""Mundo Animal", mesmo considerando os óculos fundo de garrafa, mesmo com os sulcos de xilogravura nas feições semi-áridas...
""Seja homem, para cima com a viga, moçada, a gente cai para a Segundona mas não perde a fidalguia do macho." Ninguém ali pronunciou essa coisa, eram homens de verdade, mas essas palavras grudaram nas minhas oiças como um zumbido de mosca no leite. Não tem livro, por mais genial que pareça, que se compare a uma cerveja com carne em roda de meia dúzia de varões que discutem os destinos dos seus times.
Em breve pausa, os cavaleiros em torno da carne só esqueceram o futebol na passagem de uma flor do bairro, uma morena com uma bunda capaz de fazer despencar e fechar em baixa até a Bolsa Família. Eles repetiram as mesmas onomatopéias de sempre, aquelas dos homens de verdade, uma certa sucção de saliva do vento para a boca, um assobio de fora para dentro que dispensa palavras, mesmo um clássico ""GOSTOSA!!!", mantra de todos os andaimes. Como filosofia de consolação, o solitário vascaíno e os cinco tricolores miraram o exemplo corintiano.
Mas perceberam que a comparação não valia para eles. ""Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa", elaborou um dos bigodes. ""O Corinthians está jogando com um time que brigaria pelo título também na primeira, a gente vai descer ao purgatório e ter um time dos infernos."
Quando o contrafilé gorduroso -homem de verdade teme mais a Segundona que males das correções e dos equilíbrios- ficou no ponto, um dos senhores voltou a lembrar a questão plebiscitária: ""O pior de tudo é quando seu filho, desgostoso com a Série B, muda para o time de elite do cara que levou a sua nega".
Mas como ninguém morre de amor nos trópicos, não temos a gabolice afrescalhada dos jovens Werthers e outros mancebos da Europa, larguei os disfarces, juntei-me aos cavaleiros e brindamos mais um ""gracias a la vida".

xico.folha@uol.com.br



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