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São Paulo, sexta-feira, 05 de setembro de 2003

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FUTEBOL

Fé demais

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Crente leitora, cretino leitor, uma das maiores preocupações dos pensadores esportivos do nosso tempo tem sido encontrar uma metáfora capaz de explicar porque, jogo após jogo, campeonato após campeonato, alguns de nós nos sentimos cada vez mais ligados ao futebol, viciados em futebol, dependentes de futebol.
Já se tentou compará-lo à guerra, ao alcoolismo e até mesmo ao sexo. No fim das contas, nenhuma dessas atividades se revelou plausível como analogia.
Meu palpite é que o futebol é, antes de tudo, uma religião. Os pontos em comum são muitos:
Assim como as seitas, o futebol tem templos (estádios) que todos os fins de semana recebem uma multidão de fiéis (torcedores), que pagam dízimos (ingressos), rezam e entoam cânticos (hinos).
Assim como os fiéis, os torcedores têm orgulho de exibir os símbolos da sua fé. Só que, em vez de solidéus e crucifixos, usam bonés, camisas, chaveiros e escovas de dente com o emblema do time. Em seus carros, no lugar de "Cristo Salva!", há mensagens como "Até a pé ou neste Fusquinha nós iremos aonde o Grêmio estiver" ou coisas bem menos sutis, como "Sou Fludido".
Também como os crentes, os torcedores preferem se encontrar e fazer amizade com pessoas que comunguem dos seus valores.
Além de se sentirem melhor em companhia daqueles que conhecem a verdade, eles podem confirmar mais facilmente o santo legado que vem sendo passado de pai para filho.
Assim como um cristão normalmente ignora os ensinamentos de Buda e não quer saber do Alcorão, um torcedor costuma ter por regra não se interessar pelas coisas das outras equipes. Um simples ímã de geladeira do adversário pode levá-lo à loucura, e muitos têm alergia só de pensar em vestir a camisa dos infiéis.
Há também uma história sagrada, à qual todos se referem nos momentos de desânimo.
Vitórias do passado, milagres e injustas perseguições dos árbitros são lembradas num ritual cujo objetivo é espantar a incerteza e a dúvida, os grandes inimigos de qualquer religião.
Não faltam também patriarcas fundadores, profetas que anunciam tempos melhores, mártires, missionários e anjos vingadores. E, é claro, há o grande messias, que pode se chamar Zico, Ademir da Guia, Raí, Sócrates, Falcão, Garrincha ou Pelé. E este messias é o símbolo da vitória contra as forças do mal.
O pior é que, da mesma forma que a religião, o futebol tem no seu passado um rastro de guerras, ódios, brutalidades, agressões injustificadas e intolerância. As lutas entre cristãos e protestantes, ou judeus e muçulmanos, têm mais em comum com as guerras de torcedores do que sonha a nossa vã sociologia do esporte.
Sou, paradoxalmente, santista e ateu convicto, mas acredito que na religião e no futebol devemos ter respeito pela fé alheia.
É como já dizia o título de um velho filme de Steve Martin: "Fé demais não cheira bem".

Z
Zonzo tinha tal alcunha porque estava sempre neste estado. A causa era a aguardente que o atacante bebia desde os primeiros raios de sol. Zonzo era um alcoólatra veterano e inveterado. Por conta disso, suas pernas estavam sempre bambas e os zagueiros nunca sabiam se ele iria para a direita ou para a esquerda, parar ou seguir, passar ou chutar. Isto fazia dele um fantástico atacante. O sucesso de Zonzo teve fim quando o novo padre chegou à cidade. Com paciência e devoção, o santo homem fez com que o jogador parasse de beber. Zonzo perdeu seu futebol. Foi para os bancos da igreja e dos reservas. Os torcedores da cidade ainda estão em dúvida sobre o assunto, e muito se discute se o novo padre é um servo de Deus ou do Diabo.

E-mail torero@uol.com.br


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