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São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

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FUTEBOL

O outro

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

O fato ocorreu há uns três anos. Não o escrevi logo porque queria esquecê-lo. Como não consegui, vou imprimi-lo aqui. Assim, pelo menos, ele se transformará em ficção e deixará de ser um fantasma que me persegue.
Eu estava sentado num banco da praça, observando o pequeno lago que espelhava o céu. Quando cansava da paisagem, lia um pouco sobre Borges. Não, não sobre Jorge Luis Borges, mas sobre Carlos Alberto Borges, meia que fez algum sucesso no Palmeiras de Telê Santana.
Virava a página quando sentou-se um homem no banco. Olhei-o com atenção. Era eu.
Ou melhor, um outro eu, sem barba, mais magro e vestindo uma camisa do Jabaquara. Ele também me percebeu e trocamos um olhar assustado. Quando me recuperei, perguntei:
- Por acaso você nasceu em Santos?
- Isso mesmo.
- E por acaso você não se chama Torero?
- É o meu sobrenome. Mas não me chamam assim há muito tempo.
- E como te chamam?
- Touro.
- Como?
- É o apelido que me deram quando jogava de médio-volante.
- Você não é jornalista?
- Não. Nunca fui.
Vi que estava diante de uma possibilidade de mim mesmo. Uma espécie de universo paralelo, que aparece nos contos fantásticos e nos episódios de "Jornada nas Estrelas". Curioso, perguntei:
- Como você começou a jogar futebol?
Ele achou a pergunta estranha, mas não menos que aquela situação. Então respondeu:
- Quando tinha 15 anos fiz um teste num time de várzea chamado Universo, lá do Saboó, e passei. Dali fui para o Jabaquara, onde joguei até os 20, e aí entrei no Santos. Fui reserva do reserva do Dema no Paulista de 84. Eu era um jogador meio violento. Estilo Chicão. Não consegui me firmar no time e fui vendido. Joguei no Marília, no XV de Piracicaba, no Águas de Lindóia, no Itararé, no Tanabi, no Linense, no Garça e voltei para o Jabaquara. Hoje sou o auxiliar técnico de lá.
- Entendi o que está acontecendo. Você é eu, só que passou no teste do Universo. Lembro que fui até lá, perdi um gol na cara do goleiro e acabei dispensado.
- Eu lembro desse lance. A bola bateu na trave e entrou.
- A sua entrou. A minha saiu.
- Foi sorte.
- Ou azar. E você escreve sobre o quê?
- Sou colunista esportivo.
- E nunca jogou futebol profissionalmente?
- Nunca.
Após me olhar fixamente por algum tempo, ele disse: "Se tem uma coisa que detesto, é colunista esportivo que nunca jogou bola e vive dando palpite". Eu respondi: "Se tem uma coisa que eu odeio é volante que não sabe jogar bola e só vive dando pancada".
Então nos levantamos e saímos, um para cada lado, sem olhar para trás. Ao mesmo tempo odiando e invejando nossos outros eus.

Outro outro
Este conto é baseado em outro, de Jorge Luis Borges, chamado "O outro". Aquele vale bem mais a pena do que este outro. E eu fiz mesmo teste para jogar num time chamado Universo.

L
Lelo foi o inventor do lelê, a arte de dominar a bola de futebol de modo que ela não caía no chão. Na última partida do Campeonato Municipal de Glorinha (Rio Grande do Sul), seu time seria campeão com um simples empate. Mal foi dada a saída e Lelo começou a fazer lelês. Foi assim o jogo inteiro, de modo que seu time foi campeão. Quase todos os torcedores o tomam como um gênio da astúcia, apenas uns poucos, eternamente insatisfeitos e provavelmente do partido de oposição, o tomam por covarde.

E-mail torero@uol.com.br


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