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FUTEBOL
O outro
JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA
O fato ocorreu há uns três
anos. Não o escrevi logo porque queria esquecê-lo. Como não
consegui, vou imprimi-lo aqui.
Assim, pelo menos, ele se transformará em ficção e deixará de ser
um fantasma que me persegue.
Eu estava sentado num banco
da praça, observando o pequeno
lago que espelhava o céu. Quando
cansava da paisagem, lia um
pouco sobre Borges. Não, não sobre Jorge Luis Borges, mas sobre
Carlos Alberto Borges, meia que
fez algum sucesso no Palmeiras
de Telê Santana.
Virava a página quando sentou-se um homem no banco.
Olhei-o com atenção. Era eu.
Ou melhor, um outro eu, sem
barba, mais magro e vestindo
uma camisa do Jabaquara. Ele
também me percebeu e trocamos
um olhar assustado. Quando me
recuperei, perguntei:
- Por acaso você nasceu em
Santos?
- Isso mesmo.
- E por acaso você não se chama Torero?
- É o meu sobrenome. Mas
não me chamam assim há muito
tempo.
- E como te chamam?
- Touro.
- Como?
- É o apelido que me deram
quando jogava de médio-volante.
- Você não é jornalista?
- Não. Nunca fui.
Vi que estava diante de uma
possibilidade de mim mesmo.
Uma espécie de universo paralelo,
que aparece nos contos fantásticos e nos episódios de "Jornada
nas Estrelas". Curioso, perguntei:
- Como você começou a jogar
futebol?
Ele achou a pergunta estranha,
mas não menos que aquela situação. Então respondeu:
- Quando tinha 15 anos fiz um
teste num time de várzea chamado Universo, lá do Saboó, e passei.
Dali fui para o Jabaquara, onde
joguei até os 20, e aí entrei no
Santos. Fui reserva do reserva do
Dema no Paulista de 84. Eu era
um jogador meio violento. Estilo
Chicão. Não consegui me firmar
no time e fui vendido. Joguei no
Marília, no XV de Piracicaba, no
Águas de Lindóia, no Itararé, no
Tanabi, no Linense, no Garça e
voltei para o Jabaquara. Hoje sou
o auxiliar técnico de lá.
- Entendi o que está acontecendo. Você é eu, só que passou
no teste do Universo. Lembro que
fui até lá, perdi um gol na cara do
goleiro e acabei dispensado.
- Eu lembro desse lance. A bola bateu na trave e entrou.
- A sua entrou. A minha saiu.
- Foi sorte.
- Ou azar. E você escreve sobre
o quê?
- Sou colunista esportivo.
- E nunca jogou futebol profissionalmente?
- Nunca.
Após me olhar fixamente por
algum tempo, ele disse: "Se tem
uma coisa que detesto, é colunista
esportivo que nunca jogou bola e
vive dando palpite". Eu respondi:
"Se tem uma coisa que eu odeio é
volante que não sabe jogar bola e
só vive dando pancada".
Então nos levantamos e saímos,
um para cada lado, sem olhar para trás. Ao mesmo tempo odiando
e invejando nossos outros eus.
Outro outro
Este conto é baseado em outro,
de Jorge Luis Borges, chamado
"O outro". Aquele vale bem
mais a pena do que este outro. E
eu fiz mesmo teste para jogar
num time chamado Universo.
L
Lelo foi o inventor do lelê, a arte
de dominar a bola de futebol de
modo que ela não caía no chão.
Na última partida do Campeonato Municipal de Glorinha
(Rio Grande do Sul), seu time
seria campeão com um simples
empate. Mal foi dada a saída e
Lelo começou a fazer lelês. Foi
assim o jogo inteiro, de modo
que seu time foi campeão. Quase todos os torcedores o tomam
como um gênio da astúcia, apenas uns poucos, eternamente
insatisfeitos e provavelmente
do partido de oposição, o tomam por covarde.
E-mail torero@uol.com.br
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