São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2001

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BASQUETE

Soldado da fortuna

MELCHIADES FILHO
EDITOR DE ESPORTE

Tocava bois magros, manhã e noite, à procura de brotos. Dia sim, dia não, cuidava da ordenha. A rotina era simples, igual à de outros adolescentes daquelas planícies de pobreza. Mas ele não, era especial, a estrela da fazenda. Os garotos até cobravam ingresso dos visitantes. Fósforos, lâminas e guloseimas, o preço para ver o jovem pastor de 2,20 m.
Um grupo de curiosos encantou-se. Concluiu, rápido, que o rapaz seria perfeito para atrair incrédulos à missão religiosa.
O convite foi feito ao pai, líder do clã Dinka. A promessa de ensinar ao menino os segredos do alfabeto arrancou-lhe o sim.
Aos 15 anos, fenômeno da mitose, o jovem encheu uma pequena trouxa de lona com roupas e juntou-se à caravana católica.
A trilha de 800 km em direção ao norte consumiu várias semanas. Boa parte, segundo se comenta à fogueira da tribo passados 20 anos, foi feita a pé.
A chegada à periferia da cidade de Cartum, o adolescente festejou com gritos e abraços. O primeiro contato com a bola laranja, com chutes que doíam o dedão do pé.
Foi, assim, na escola de catecismo que, aos 16 anos, ele conheceu o lápis e o basquete.
Dois anos e muitos arremessos depois, deixava para trás a capital sudanesa e as lembranças da fazenda de Bahr Al-Ghazal.
Os padres conseguiram-lhe bolsa de estudos. Os, agora, 2,31 m de altura bastaram para seduzir a pequena universidade de Bridgeport, costa leste dos EUA.
Em 1985, Manute Bol, 23, assinava seu primeiro contrato, juntava-se ao nigeriano Hakeem Olajuwon e fazia a NBA mover os olhos na direção da África.
Para os padrões profissionais, ele não sabia quase nada de basquete. Seu repertório ofensivo resumia-se a um ganchinho vagabundo e a uma enterrada burocrática -com as duas mãos.
Mas a estatura, sobretudo a envergadura, faziam diferença na defesa. Logo no primeiro ano, estabelecia o recorde de tocos.
Apesar do descrédito, Bol construiu uma sólida carreira de dez anos na NBA. Atuou ao lado de "dream teamers", como Charles Barkley e Chris Mullin. Faturou milhões em salários e propagandas. Voltou ao Sudão como herói.
Mas a saga do mais alto jogador da história da liga norte-americana não acabou em 1996.
O casamento com uma americana de New Jersey ruiu. A guarda dos quatro filhos foi perdida.
Toda a fortuna acabou, escoada em negócios fracassados, na ajuda à numerosa e miserável família e no financiamento de grupos armados rebeldes no sul católico do Sudão -o ex-jogador gastou US$ 3,5 milhões somente com os grupos separatistas, que desde 1983 combatem o regime muçulmano em uma guerra civil que já matou 2 milhões.
O reumatismo crônico o impede de matar a saudade da bola.
Mas Manute Bol, 39, ainda não desistiu do sonho americano.
Após três anos recluso na sua tribo, obteve autorização para cruzar a fronteira do Egito.
Hoje, divide apartamento de um quarto, no Cairo, com a segunda esposa, um bebê de 20 meses e outros três fugitivos do clã.
O dinheiro da passagem já está contadinho. O pedido de uma pensão para a NBA, redigido. Falta apenas o novo visto de entrada.
Há três semanas, o gigante está acampado na porta da embaixada norte-americana. Ainda não conseguiu atravessar os portões.

África 1
Hakeem Olajuwon, 38, bicampeão da NBA, trocou de equipe. Depois de 17 campeonatos em Houston, vai reforçar o Toronto por três anos. Apesar da decadência física, ele ainda pode ser muito útil -sobretudo na Conferência Leste, tão carente de bons pivôs.

África 2
A NBA conta hoje com uma dezena de gigantes nascidos na África. O último a assinar foi o senegalês DeSagana Diop, do Cleveland.

África 3
A ONU está preocupada com o garimpo do basquete no continente. Há denúncias de que olheiros raptam meninos das tribos, levando-os clandestinamente para países europeus.

África 4
Cerca de 80% dos jogadores da NBA são negros.

E-mail: melk@uol.com.br


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