São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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Presidentes do rei

Juca Varella - 14.mai.97/Folha Imagem
O então ministro Pelé, em 1997, mostra a FHC jornal de 72 na discussão da lei que levaria seu nome



Usado por civis e militares, Pelé diz ter deixado de ganhar US$ 15 milhões nos quatro anos em que trabalhou como ministro dos Esportes de FHC


A partir de 1982, ele adotaria o discurso de acordo com o qual só não defendeu o Brasil na Copa da Alemanha, disputada em 1974, por ter percebido ""os malefícios que a ditadura impôs ao país".
Foi assim em 1988, quando disse só ter percebido o uso político do tricampeonato mundial pelos militares no ano seguinte da conquista no México.
Foi assim também em março de 1993, no lançamento do livro ""Pelé - O Supercampeão", do jornalista Orlando Duarte, quando reclamou que, enquanto dava o melhor de si ""para deixar o povo feliz", estarem acontecendo (por trás) aquelas barbaridades". ""Não percebia (em 1970) o que estava acontecendo", afirmou.
Há cerca de dois meses, voltou ao assunto, repetindo a tese de que só não atuou no Mundial da Alemanha como protesto contra o regime, que usara a conquista de 1970 para ""mascarar a violência que estava cometendo".
Apesar do discurso atual, porém, quando já tinha se despedido da seleção brasileira, suas declarações eram diferentes. Na ocasião, não responsabilizava o governo militar por sua saída da seleção.
Em entrevista dada em 2 de setembro de 1971, afirmava que o Brasil era ""um país liberal, o país da felicidade". ""Sobre ditadura, não posso falar sobre algo que não existe. Nós somos livres."
Quem mais o convenceu a encerrar a carreira na hora certa, na verdade, foi Zoca e Júlio Mazzei, ex-preparador físico do Santos, que virara seu assessor.
O medo do irmão de Pelé era vê-lo disputando o Mundial de 1974, com o risco de fracassar e, a partir daí, atrapalhar sua imagem de vencedor. Várias vezes, segundo relato da própria mãe de Pelé, Celeste Arantes do Nascimento, Zoca aconselhou-o a parar no auge, num momento em que propostas publicitárias começaram a aparecer, uma atrás da outra.
Além da Pepsi, a Adidas, que já havia oferecido ao atleta US$ 350 mil para que disputasse a Copa de 1974 e depois lhe propôs US$ 200 mil para que fizesse uma campanha promocional para ela, tentou cooptá-lo.
Quem intermediou o contato de Pelé com a empresa foi Havelange, interessado em ver o jogador na Copa da Alemanha.
Apesar de a companhia de Horst Dassler ter apoiado o inglês Stanley Rous para a presidência da Fifa, ela também ajudou o brasileiro, preocupada que estava com a possibilidade de ele ganhar as eleições. Não foi por menos que, logo depois do Mundial de 1974, a Adidas se associou à Fifa e fez proposta a Pelé para uma campanha publicitária mundial.
Mais tarde, chegou o momento de a Warner Communication, que iniciara os contatos com Pelé e Mazzei, via Havelange, em 1971, e os estreitara, via Kissinger, em 1974, fazer-lhe uma proposta oficial, viabilizando sua ida para a América do Norte.
Tanto Kissinger quanto Havelange, após a Copa-74, tiveram pelo menos duas reuniões com Steve Ross, principal executivo da Warner na época, para acertar a transferência de Pelé para os Estados Unidos, bem como discutir estratégias para o desenvolvimento do futebol no país.
Kissinger, fã confesso do esporte e de Pelé, queria popularizá-lo nos Estados Unidos. Para que isso acontecesse, achava primordiais duas coisas: contar com o atleta mais bem-sucedido na modalidade em todos os tempos e realizar uma Copa em seu país.
A primeira medida, que tinha começado a ser idealizada por Havelange e Mazzei em janeiro de 1971, durante uma excursão do Santos à Jamaica, foi costurada durante a Copa de 1974.
A companhia do setor de entretenimento permitiu que o atleta fosse defender o Cosmos, em 1975, pagando-lhe cerca de US$ 9 milhões, além de 50% do que faturasse pelo uso do nome Pelé.
A segunda medida, porém, ficara para os anos 80. E provocaria a primeira rusga entre Havelange e Pelé. O ex-jogador, apesar de na ocasião ter evitado criticar o presidente da Fifa, sentiu-se traído quando a Colômbia não teve condições de abrigar a Copa de 1986, e o dirigente manipulou para que ela fosse para o México.
Assim como Kissinger, ele tinha tido a garantia de que Havelange faria todos os esforços para que, na década de 80, um Mundial fosse realizado nos Estados Unidos.
E a oportunidade surgiu em janeiro de 1983, quando a Colômbia desistiu de receber a Copa.
Com os colombianos de fora, Brasil, México, Estados Unidos e Canadá mostraram interesse em abrigar a competição.
Havelange, que hoje defende o Mundial de 2010 no Brasil, mostrou-se contra a Copa na América do Sul, dizendo que seria muito caro o país investir quase US$ 500 milhões em reforma de estádios. Na época, porém, quem comandava a CBF era Giulite Coutinho, desafeto do dirigente, e não Ricardo Teixeira, seu atual presidente, que foi casado com Lúcia, única filha de Havelange.
Pelé, por sua vez, defendeu publicamente o Mundial nos Estados Unidos, onde estava importante filão de seus negócios.
Mas, em 20 de maio de 1983, numa reunião realizada em Estocolmo, Suécia, a Fifa, pressionada por Havelange e Guillermo Cañedo, vice-presidente da entidade e executivo da Televisa Mexicana, grupo de mídia do México, decidiu repetir a Copa de 1970.
Dezesseis anos depois, ela aconteceria novamente no México e não nos Estados Unidos, que até então nunca a recebera.
Como não avisou Pelé nem Kissinger que a decisão já estava tomada, os dois se irritaram com Havelange, especialmente o segundo, que chegou a discursar durante 1h27min, defendendo a candidatura norte-americana, sem saber que os Estados Unidos já haviam perdido a parada.
Mas, 11 anos mais tarde, quando a Copa de fato seria nos EUA e Pelé estava de relações rompidas com Ricardo Teixeira, presidente da CBF, e Havelange, seu nome mostrou-se mais forte que as ""picuinhas" dos dois e, apesar de ter sido impedido de presenciar o sorteio dos grupos do Mundial, tornou-se o grande vencedor do evento na América do Norte.
Na Copa dos EUA, suas empresas faturaram US$ 20 milhões.
Foi garoto-propaganda da Mastercard, tendo participado de 126 eventos entre 1993 e 1994 para divulgar o cartão, pelos quais recebeu cerca de US$ 8 milhões.
Obteve, ainda, para a Pelé Sports & Marketing, sua empresa de marketing esportivo, o direito de distribuição dos ingressos do Mundial para o Brasil, além da exploração comercial do Striker, o mascote da Copa, licenciando-o para mais de 80 empresas no país.
Para completar, foi a estrela de um documentário, não por acaso intitulado ""O Jogo de Bilhões", dividido em dez capítulos e vendido para a BBC, de Londres, a RAI, da Itália, e o Canal Plus, da França.
Sua agência de marketing esportivo, que formou com o empresário Hélio Vianna, em julho de 1991, e participou da Copa-94, teve, no Santos e no Flamengo, seus dois primeiros clientes.
Ainda em 1991, ela comprou de ambos o direito de administrar seus jogos na Supercopa, torneio que reunia os ganhadores da Libertadores da América, a principal competição de clubes de futebol do continente.
Em 1992, tentou comprar os direitos de transmissão dos jogos das eliminatórias sul-americanas para a Copa de 1994. Para a CBF, ofereceu US$ 1 milhão pelos quatro jogos que o Brasil faria em casa. Mas nenhuma resposta foi dada a Roberto Seabra, diretor de projetos da Pelé na ocasião.
Com a agência em atividade, seus interesses pelo Santos aumentaram. Em 1993, empenhou-se na campanha de Miguel Kodja Neto, que em dezembro assumiria a presidência do clube.
Durante nove meses, participou da administração santista -e em especial do departamento de futebol, procurando uma empresa, por intermédio da Pelé, que pudesse patrocinar o time.
Por divergências com Kodja Neto, foi afastado do clube em setembro de 1994. Na saída, reclamou muito, inclusive do fato de ""ter trabalhado de graça durante nove meses".
Segundo Pelé, um dos motivos que o levaram a se afastar de Kodja Neto foram irregularidades administrativas que teriam sido cometidas pelo dirigente.
O ex-jogador contratou a Trevisan Associados para fazer uma auditoria no clube e, depois de constatadas irregularidades no bingo do Santos, o Conselho Deliberativo afastou Kodja Neto.
Samir Abdul-Hak, advogado e amigo de Pelé desde os anos 60 e até então vice-presidente santista, assumiu o comando do clube.
Mas a participação do ex-jogador na administração do Santos foi, a partir daí, segundo ele próprio relatou, ""muito menor do que a desejada".
E um dos motivos para que isso ocorresse foi sua participação como ministro dos Esportes no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998).
Sua entrada na política, ensaiada desde o final dos anos 70, quando encerrou sua carreira como jogador, poderia ter começado mais cedo.
Afinal, a imagem de Pelé, uma das personalidades mais conhecidas no mundo todo, não foi explorada apenas pelos militares.
Ainda em 1958, quando o Brasil se sagrou campeão mundial pela primeira vez, Pelé, que ainda não tinha completado 18 anos de idade, já aparecia ao lado do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) após a conquista.
No final dos anos 60, especialmente durante o governo Médici, a imagem de Pelé era usada como o símbolo de um Brasil vitorioso.
Com campanhas ufanistas, Médici tentava mascarar a atuação do aparelho repressivo de seu governo exibindo as conquistas da seleção brasileira e o crescimento econômico do país.
Mas, mesmo após o regime militar, a fama de Pelé, que a partir dos anos 70 também era visto ao lado de presidentes norte-americanos, continuou sendo usada pelos governantes brasileiros.
Em 1985, por exemplo, ele conta que foi sondado por Tancredo Neves para comandar o setor de esportes no Brasil.
Com a morte do presidente eleito, antes mesmo de tomar posse, Pelé acabou não tendo participação no governo de José Sarney (1985-1990), apesar de ter tido diversas audiências com ele.
Mas, se ainda não fora daquela vez o início de sua carreira política, sua volta aos campos de futebol ""quase" aconteceu.
Numa jogada de marketing planejada por Zoca, o atleta do século se ofereceu a Telê Santana, técnico do Brasil, para defender a seleção durante a Copa de 1986.
Aos 45 anos de idade, seu retorno ao gramado ficou apenas no ""desejo", mas ganhou amplo espaço, como tudo o que faz ou diz Pelé, na imprensa mundial.
Quando Fernando Collor de Mello (1990-1992) assumiu a presidência da República, na primeira eleição direta no país desde a de 1960, que elegera Jânio Quadros, Pelé diz ter recebido outro convite para assumir o comando dos esportes no Brasil.
Mas, como não aceitou, envolvido que estava com o projeto da Pelé Sports e alegando que não teria a autonomia que desejava, ""cedeu" seu lugar a Arthur Antunes Coimbra, o Zico.
Somente em 1995, com Fernando Henrique Cardoso, o ex-jogador assumiria o ministério, criado especialmente para ele.
Como ""político", acha que sua principal realização foi a promulgação da Lei Pelé, que substituiu a Lei Zico e consolidou o processo de profissionalização dos clubes de futebol no Brasil.
Graças a ela, até 25 de março do ano 2000 os clubes serão obrigados a transformar em empresas seus departamentos de futebol, a Justiça esportiva torna-se independente das federações e surge a oportunidade de serem criadas ligas independentes, que passariam a organizar os campeonatos com ou sem o apoio das federações e da CBF.
Os opositores de Pelé, entre os quais Fábio Koff, presidente do Clube dos 13, que reúne os 16 principais clubes brasileiros, reclamam da lei.
Entre outras críticas, dizem que ela prejudica o investimento em categorias de base, já que, a partir de março de 2001, o passe do jogador de futebol será extinto, o que facilitaria sua transferência para outros clubes.
Dizem também que ela não regulamenta a abertura de capital dos clubes, nem versa sobre a elaboração, a duração e eventuais restrições dos contratos de empresas com as equipes de futebol.
Acusam ainda Pelé de ter ""legislado em causa própria", já que, no início deste ano, a Folha revelou que a agência do ex-ministro estudava a criação de uma liga dos principais clubes brasileiros, sem a participação da CBF.
Ela seria comandada pela agência do ex-ministro, em parceria com a Media Partners, empresa de marketing esportivo.
Pelé, por sua vez, rebate todas as insinuações e diz estar satisfeito por ter liberado o atleta de futebol da escravidão -""o passe era uma coisa dos tempos feudais"- além de proporcionar aos clubes a possibilidade de se associarem a empresas de porte, como fez o Corinthians com o HMTF, fundo de investimentos norte-americano que está interessado no mercado sul-americano.
Faz questão também de rebater comentários de que teria criado a lei por interesse próprio.
Reconhece que, após a Lei Pelé, sua agência negociou contrato com o NationsBank, que fez parceria com o Vasco para reformular o estádio de São Januário e construir um centro de treinamento para o clube em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e um ginásio, por R$ 70 milhões.
Reconhece também que negocia parceria com Santos, Flamengo e São Paulo, representando no país os interesses da ISL (International Sports Leisure), empresa suíça fundada por Horst Dassler, braço direito da Fifa desde os tempos de Havelange.
Mas lembra que, pelo menos até aqui, ""quem mais lucrou foi a Traffic (concorrente da Pelé)". Afinal, a empresa de J. Hawilla já intermediou os acordos do HMTF, o fundo de investimentos norte-americano, com Corinthians e Cruzeiro.
Após a Lei Pelé, a agência de Hawilla, que é ligada à CBF, responsável pelo contrato da entidade com a Nike, com duração de dez anos, também conseguiu vender 49% de suas cotas para os norte-americanos.
E alega ainda que perdeu cerca de US$ 15 milhões quando foi ministro. ""Deixei de fechar pelo menos quatro contratos publicitários de peso. Em compensação, tive a oportunidade de trabalhar para um governo que ajudou a diminuir a miséria do Brasil."
Apesar das críticas que são feitas ao presidente Fernando Henrique, Pelé costuma dizer que é preciso um pouco de paciência por parte da sociedade.
""Ele mal começou o segundo mandato", afirmou, durante evento de lançamento em São Paulo de um cartão de crédito que leva seu nome e tem parceria com a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança.
""Reclamação tem em todo lugar, até mesmo nos EUA. O Clinton (presidente norte-americano) é um estadista, mas não quiseram tirá-lo do cargo por causa de uma secretária (sic)?", perguntou.
""Considero o presidente (Fernando Henrique) uma pessoa bem-intencionada, que está lá (no poder) para tentar ajudar o povo, como eu fiz quando fui ministro. Como eu, ele não está lá para ganhar dinheiro."


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