São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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A falência


Jogador teve prejuízos com investimento no final dos anos 60, que o deixaram sob a esfera de influência de João Havelange, candidato à presidência da Fifa


Quando autuado pela Receita Federal durante o governo militar, Pelé argumentou que, apesar de sua carreira e imagem terem sido muito bem administradas, o mesmo não acontecia com as aplicações de seus rendimentos, tendo amargado, durante a década de 60, uma série de prejuízos.
Mais tarde, reclamou de perseguição dos militares, que tentaram forçá-lo, em pelo menos três ocasiões, todas sem sucesso, a disputar a Taça Independência, em 1972, e o Mundial da Alemanha, em 1974, pelo Brasil.
Alegando problemas financeiros, admitiu ter recebido auxílio de Havelange, mas diz que o dinheiro foi todo devolvido depois, a partir de 1975, quando sua transferência para o Cosmos já estava concretizada.
No tocante a seus investimentos nos anos 60, tinha razão para reclamar. O que ganhava com salários, premiações e contratos publicitários tinha, fundamentalmente, dois destinos: compra de imóveis e de empresas. Chegou a adquirir 41 imóveis, a maioria em Santos, e participação acionária em pelo menos seis empresas.
E, como todos os negócios em que meteu as mãos quando atleta do Santos (1956-1974) tiveram graves problemas de gerenciamento, contabilizava prejuízo significativo em 1969.
Principalmente por indicação de José Ozores Gonzales, o Pepe Gordo, empresário que lhe foi apresentado por Zito, seu companheiro no Santos, assim que se transferiu para o time praiano, investiu dinheiro em empresas dos mais distintos ramos de atividade.
A Sanitária Santista, por exemplo, vendia material de construção, a Fiolax produzia fios de látex, a Sotel transportava combustível, a Assessoria Aduaneira atuava no setor de importação e exportação, a Incorporadora Neptuno construía prédios em Santos, e a Pelé Fisioterapia fazia tratamento de lesões.
Seus dois primeiros grandes negócios foram a Sanitária Santista e a Incorporadora Neptuno, em sociedade com Zito e Pepe Gordo.
Ambos fracassaram.
Quando comprou a Sanitária, uma loja de material de construção que ficava na rua João Pessoa, 124, no centro de Santos, teve de investir R$ 180 mil e assumir uma dívida de R$ 130 mil.
Com Pelé e Zito atuando pelo Santos e sem tempo livre para cuidar da loja, quem controlava o negócio era Pepe Gordo.
E foi aí que os problemas começaram. Jair Arantes do Nascimento, o Zoca, irmão de Pelé, irritou-se com o fato de o atleta ter de colocar na empresa, mês após mês, cerca de 40% do que faturava com salário e publicidade e, mesmo com tais recursos, a Sanitária continuar deficitária. Convenceu, então, seu irmão de que o melhor a fazer seria fechá-la.
Com a Incorporadora Neptuno, a história foi semelhante. O prejuízo, idem. No final do negócio, Pelé contabilizou perdas na casa dos R$ 230 mil.
Afastado de Pepe Gordo, montou um escritório no terceiro andar de um prédio no centro de Santos, com o objetivo de centralizar ali a gerência de seus empreendimentos.
Um de seus amigos, José Fornes Rodrigues, o Pepito, foi quem assumiu, em 1966, o controle dos negócios. Com ele, trabalhavam outros nove funcionários -cinco advogados, dois economistas, um publicitário e uma secretária.
Seus principais investimentos no período foram a Pelé Fisioterapia, em sociedade com Lima, ex-jogador do Santos e cunhado de Rose Cholbi, que se tornaria a mulher de Pelé em 1966, e a Fiolax, empresa localizada em Santo André.
Na Fiolax, uma sociedade anônima com pelo menos 43 acionistas, chegou a ter 6% das cotas.
Foi convencido a investir na empresa por Nestor Pacheco, na época diretor do Santos e funcionário do Banco do Brasil, que começou a operá-la em 20 de março de 1967 e disse a Pelé que estariam ali as chances de recuperar os prejuízos, especialmente após o fracasso da Sanitária.
Presidida por Jurandyr Moraes Lima, a Fiolax tinha, entre seus sócios, Zito e Nicolau Morán, ex-presidente do Santos.
Apesar de carregar um cartão da empresa, que dizia "Fiolax Indústria de Borracha S.A. -Edson Arantes do Nascimento, diretor- rua Bororós, 199, Vila Pires, Santo André", era seu irmão Zoca quem participava, em seu lugar, da administração.
Como também a Fiolax e a Pelé Fisioterapia não prosperaram, o então jogador, ao invés de recuperar as perdas com a Sanitária e a Incorporadora Neptuno, teve ainda mais prejuízos, chegando, de acordo com seus representantes, a um déficit de aproximadamente R$ 400 mil, considerando-se valores de hoje, em 1969.
Foi aí, então, antes mesmo do início da Copa do México, em 1970, que Havelange, aproveitando-se dos problemas financeiros de Pelé, aproximou-se ainda mais do jogador, com a intenção de usá-lo como cabo eleitoral em sua campanha para a Fifa.
De cara, o então presidente da CBD colocava-se à disposição na busca por parceiros comerciais que pudessem auxiliá-lo em sua recuperação financeira. Em troca, Pelé lhe garantiu que apoiaria sua candidatura.
E o jogador cumpriria sua palavra à risca. Ainda hoje, apesar do estremecimento das relações entre os dois, especialmente nos anos 90, Havelange, em entrevista à Folha, reconheceu a importância de Pelé para sua vitória.
Pelo menos 42 delegados da Fifa com direito a voto na eleição que aconteceria em Frankfurt, na Alemanha, em 1974, pediram ao brasileiro um contato com Pelé. Foram, sem exceção, atendidos.
Alguns até conseguiram que a seleção, graças a Havelange, ou o Santos, com a interferência de Pelé, fosse jogar em seus países, trocando as visitas por votos ao então presidente da CBD.
Antes mesmo de oficializar sua intenção de assumir a Fifa, Havelange já ensaiava a campanha.
Em 1969, foi ele quem marcou uma excursão do Santos à África e, depois, passou a divulgar a história de que Pelé interrompera um conflito no continente, já que todos queriam vê-lo jogar.
Hoje, o próprio Pelé reconhece que não foi bem assim. ""Nós jogamos na capital da Nigéria (a região da Biafra estava em guerra, iniciada em 1967 e encerrada três anos mais tarde), e o que aconteceu foi que o governo destacou um baita contingente militar para nos proteger, impedindo que a cidade fosse invadida enquanto estivéssemos por lá", explicou.
Em 1971 e 1972, Havelange percorreu os continentes europeu, africano e asiático acompanhado de Pelé, que pedia apoio a seu compatriota na disputa contra o inglês Stanley Rous.
E foi aí, entre 1971 e 1973, período em que já estava oficializada a candidatura Havelange -o que ocorreu em 1971, após reunião das federações da Argentina e do Uruguai-, que a investigação em torno do então presidente da CBD aumentou.
E ela mostra que dinheiro da entidade financiava as excursões do Santos e da seleção, que, por imposição de Havelange, acabava disputando amistosos por cotas inferiores às que costumava receber. Normalmente, a seleção pedia US$ 50 mil, na época, por partida disputada no exterior. Graças à campanha de Havelange, o valor caiu para US$ 30 mil.
Algo parecido aconteceu com Pelé, que, ao invés dos US$ 8 mil que ganhava por amistoso disputado pelo Santos fora do país no final de sua carreira no clube, recebia US$ 4 mil nos jogos que interessavam a Havelange.
Em 1974, pouco antes do início da Copa da Alemanha, Havelange foi eleito presidente da Fifa.
No primeiro escrutínio, quem atingisse a marca de 79 votos -dois terços do total- venceria. O brasileiro obteve 62 votos, contra 56 de Stanley Rous.
No segundo, quando ganharia quem tivesse maioria simples, a vitória voltou a ser de Havelange, 68 votos contra 52 do inglês.
O êxito do brasileiro foi muito importante para Pelé, que, no dia da eleição, esteve na Alemanha, participando do corpo-a-corpo final, quando foi pedir votos para Havelange.
Quando decidiu lançar sua candidatura, o dirigente passou a conversar com empresas de porte que pudessem investir no futebol, utilizando o esporte como instrumento de marketing para alavancar suas vendas.
A Folha teve acesso à parte da correspondência mantida entre ele e a diretoria da Coca-Cola e da Pepsi, nos Estados Unidos, em que há a sugestão de que elas utilizem a imagem de Pelé para vender seus produtos.
À Pepsi, numa carta em que Havelange aborda seus principais planos para a Fifa, como o aumento do número de participantes na Copa do Mundo e a maior divulgação do esporte em outros continentes, saindo um pouco do eixo Europa-América do Sul, ele sugere que a empresa invista em clínicas de futebol.
""Nas excursões do Santos ao exterior, ele (Pelé) tem tempo disponível para ensinar crianças a jogar futebol. Seria uma iniciativa importante para a Pepsi, para o esporte e tenho certeza de que também para o próprio Pelé", escreveu o dirigente.
E foi o que a empresa fez, contratando o atleta para divulgar sua marca, dando clínicas de futebol no exterior quando o Santos excursionava para fora do Brasil.
Feito o acordo, ele seria estendido, com a interferência de Havelange e de Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano nas administrações Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977), até a Copa da Alemanha, onde Pelé atuou como relações-públicas da Pepsi, além de acumular a função de comentarista da TV Bandeirantes.


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