São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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ARTIGO

Pelo esporte, Calipátira enfrentou a morte

LAURET GODOY
ESPECIAL PARA A FOLHA

No fantástico mundo da mitologia grega, deuses e heróis conviviam para dar exemplos, mostrar caminhos, transmitir ensinamentos e conselhos. De temperamento guerreiro, durante muitos séculos os gregos cultuaram a beleza e o esforço físico, acreditando que assim teriam proteção divina.
Dos vários torneios esportivos promovidos na Grécia Antiga, apenas um era destinado às mulheres -os Jogos Heranos, realizados para homenagear Hera, mulher de Zeus, adorada como protetora das esposas e mães. Eram disputados pelas jovens da cidade de Élis e promovidos no mês da virgem -junho ou julho atuais. A organização e a administração eram de responsabilidade das sacerdotisas de Hera, que ainda conduziam a prova esportiva, presidiam os ritos religiosos e, a cada cinco anos, teciam o véu consagrado à deusa.
Do programa constava apenas uma corrida de 162 m, e as jovens corriam descalças, com os cabelos soltos, usando uma pequena túnica, que exibia o ombro e o seio direitos. A vencedora recebia como prêmio uma coroa de oliveira selvagem e uma porção da carne da vaca sacrificada à divindade.
Porém a grande emoção esportiva ocorria a cada quatro anos. Quando os arautos proclamavam: "Que o mundo esteja livre do crime, do assassinato e do ruído das armas", uma loucura coletiva percorria o país. Pessoas de todas as condições sociais e de todas as idades queriam chegar a Olímpia, ansiosas por assistir aos jogos promovidos para honrar Zeus, o deus supremo do Olimpo. Mas o espetáculo realizado no vale sagrado era privilégio de deuses, homens e jovens solteiras. A uma única mulher casada era permitida a presença no estádio: a sacerdotisa de Deméter, deusa da fertilidade, da terra cultivada e da germinação do trigo, que assistia às provas de um lugar especial. Às demais, era vedado o comparecimento, porque o quinto item do Código Olímpico era incisivo: a mulher casada encontrada no local dos Jogos seria atirada do alto do rochedo Typeu, sem qualquer julgamento.
Mas, em Rodes, havia uma corajosa mulher chamada Calipátira, que era filha e irmã de campeões olímpicos. Foi ela quem treinou o filho Pisidoros para disputar o pugilismo nos Jogos Olímpicos realizados em 396 a.C. O jovem se classificou para disputar a final com Neomon, um verdadeiro gigante, e travou com ele um combate árduo e demorado. Quando Neomon abandonou a luta, vencido, um dos treinadores afastou-se do local a eles destinado e correu a abraçar o jovem campeão. Soluçando, jogou ao chão a túnica masculina que vestia. A multidão, muda de espanto, reconheceu Calipátira, a filha predileta de Diágoras. Jamais, anteriormente, alguém ousara desobedecer à lei que impedia o acesso de mulheres casadas ao estádio durante os Jogos Olímpicos. Mas, compreendendo os motivos que levaram aquela mulher a cometer o sacrilégio, os magistrados, complacentes, aplicaram-lhe a sanção destinada aos que blefavam: guarnecer com uma nova estátua um dos erários.
Por amor ao filho, ao esporte e à verdade, Calipátira enfrentou a morte e venceu-a.
Essa restrição às mulheres, na época, não causava espanto, já que os impedimentos ocorriam também em outros setores da vida grega. As mulheres não podiam participar do governo, possuir propriedades ou recebê-las por herança. Quando solteiras, deviam obediência aos pais e, após o casamento, aos maridos. Dedicavam-se aos filhos, ao lar e à arte de tecer. Apenas.
Embora a maioria dos gregos considerasse a mulher um ser inferior, consta que Sócrates, o grande filósofo, discordava dos homens do seu tempo e dizia: "Uma vez igualada ao homem, a mulher torna-se seu superior".


Lauret Godoy, ex-campeã brasileira e sul-americana do revezamento 4 x 100 m, é autora de "Os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga" (ed. Nova Alexandria)


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