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XICO SÁ
Deus e a placa dos descontos
Gol depois dos 45min do 2º tempo deveria ser proibido por todas as autoridades, pelo bem dos que amam o futebol
A
MIGO TORCEDOR , amigo secador, gol depois dos 45min do
segundo tempo deveria ser
proibido pela Sociedade Brasileira
de Cardiologia, por medida provisória do presidente da República, já
que ele gosta tanto do circo ludopédico e torce pelo time que mata mais
que bala perdida, deveria ser proibido pela Organização Mundial da
Saúde, a OMS, todas as autoridades
civis, militares e eclesiásticas.
Ah, não fez durante 90 minutos,
dane-se, não me venha com surpresa ao apagar das luzes, quando o garoto do placar já havia até guardado
os números, quando Fiori Gigliotti
já havia decretado, lá dos céus, que
as cortinas se fechassem...
Marcão, amigo, meus sentidos pêsames, pegaste tudo, o possível e o
impossível, no jogo com o Inter. A
cada defesa, o teu pai se contorcia no
sofá, como se aqueles gestos te ajudassem em campo, como o jogador
de sinuca que tenta empurrar a bola
com a dramaturgia do corpo, linguagem que sempre discuto, na viagem
ao fim da noite, com o amado Peréio.
Quis o destino que o Adriano Gabiru, o mesmo herói do Mundial
contra o Barça, acertasse aquela, aos
47min, indefensável, um gol que já
embutia o minuto de silêncio do teu
próximo jogo. Deves ter sentido, no
chute fatal, que a bola que se enroscava na rede pesava mais do que 450
gramas da angústia boleira do ofício.
Por que diabos o juiz não apitou o
fim aos 46min e meio, por que a virada demasiadamente injusta?
O Novo Hamburgo merecia no
mínimo o empate, Marcão... Jogaste, meu jovem, como um Manga, um
Mazurkiewicz, uma aranha negra do
time anilado dos pampas gaúchos.
Teu pai, em Maracajá (SC), pulava, coruja, ave palavra, como uma
criança, no chão da sala, a imitar
tuas incríveis defesas. Por certo lembrava quando viu em ti o ensaio dramático de possível goalkeeper,
quando tu voavas destemido, jogado
ao alto, para os braços paternos.
Na cabeça de "seu" Palácio Ronconi, 76, se passava de tudo na tarde do
último domingo. O filme da tua orgulhosa existência era rebobinado a
cada instante na cabeça do teu velho
como a VHS enferrujada do batismo. As tuas defesas se misturavam a
outros grandes momentos, aqueles
que a gente gosta de ver em câmera
lenta, pois só assim acreditamos se é
tudo verdade ou ficção granulada.
Adriano Gabiru, bom rapaz, deve
ter tido pesadelos naquela noite.
Lembrei-me do Obdulio Varela, líder do time uruguaio em 1950, que
depois da tragédia do Maraca vagou
anônimo pelos botecos de Copacabana e, entre bêbados, confessou-se
arrependido por fazer aquela gente
tragar a própria sarjeta envelhecida
sob o sol dos tristes trópicos.
Ter um filho zagueiro deve ser sofrido, ter um filho lateral que avança,
meu Deus, o pai segura o braço do
sofá como quem amarra os pés do
ponta arisco que parte para cima do
seu amado menino, bola nas costas...
Ter um filho volante, só prejuízo,
por mais que faça, o comentarista da
TV estragará a janta, dizendo que é
ótimo na contenção, mas péssimo
na saída de bola... Se for bom na saída de jogo, distribuindo feito um Geraldo (Flamengo), o único que jogava assobiando, três dedos o tempo
todo, dirão que deixa muito espaço...
Ter um filho atacante, nas fases de
jejum, também é desgraça, dá vontade de ir lá, na calada da noite, na véspera do clássico, e, por amor filial,
ampliar o tamanho das traves.
Ter um filho goleiro, então, meu
velho e bom Palácio Ronconi, é um
orgulho e um suplício, ficar correndo para um lado e outro do sofá como um goleiro de brinquedo, tentando fechar o ângulo da bola fatal.
Descanse em paz, amigo Ronconi
-faleceu, vítima de infarto aos
47min do segundo-, que o menino
Marcão vai sempre pular, do alto,
sem medo da vida, nos seus braços.
É, a vida não tem placa de acréscimo,
a vida é sempre desconto.
xico.folha@uol.com.br
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