São Paulo, sexta-feira, 09 de março de 2007

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XICO SÁ

Deus e a placa dos descontos

Gol depois dos 45min do 2º tempo deveria ser proibido por todas as autoridades, pelo bem dos que amam o futebol

A MIGO TORCEDOR , amigo secador, gol depois dos 45min do segundo tempo deveria ser proibido pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, por medida provisória do presidente da República, já que ele gosta tanto do circo ludopédico e torce pelo time que mata mais que bala perdida, deveria ser proibido pela Organização Mundial da Saúde, a OMS, todas as autoridades civis, militares e eclesiásticas.
Ah, não fez durante 90 minutos, dane-se, não me venha com surpresa ao apagar das luzes, quando o garoto do placar já havia até guardado os números, quando Fiori Gigliotti já havia decretado, lá dos céus, que as cortinas se fechassem... Marcão, amigo, meus sentidos pêsames, pegaste tudo, o possível e o impossível, no jogo com o Inter. A cada defesa, o teu pai se contorcia no sofá, como se aqueles gestos te ajudassem em campo, como o jogador de sinuca que tenta empurrar a bola com a dramaturgia do corpo, linguagem que sempre discuto, na viagem ao fim da noite, com o amado Peréio.
Quis o destino que o Adriano Gabiru, o mesmo herói do Mundial contra o Barça, acertasse aquela, aos 47min, indefensável, um gol que já embutia o minuto de silêncio do teu próximo jogo. Deves ter sentido, no chute fatal, que a bola que se enroscava na rede pesava mais do que 450 gramas da angústia boleira do ofício. Por que diabos o juiz não apitou o fim aos 46min e meio, por que a virada demasiadamente injusta? O Novo Hamburgo merecia no mínimo o empate, Marcão... Jogaste, meu jovem, como um Manga, um Mazurkiewicz, uma aranha negra do time anilado dos pampas gaúchos.
Teu pai, em Maracajá (SC), pulava, coruja, ave palavra, como uma criança, no chão da sala, a imitar tuas incríveis defesas. Por certo lembrava quando viu em ti o ensaio dramático de possível goalkeeper, quando tu voavas destemido, jogado ao alto, para os braços paternos. Na cabeça de "seu" Palácio Ronconi, 76, se passava de tudo na tarde do último domingo. O filme da tua orgulhosa existência era rebobinado a cada instante na cabeça do teu velho como a VHS enferrujada do batismo. As tuas defesas se misturavam a outros grandes momentos, aqueles que a gente gosta de ver em câmera lenta, pois só assim acreditamos se é tudo verdade ou ficção granulada.
Adriano Gabiru, bom rapaz, deve ter tido pesadelos naquela noite. Lembrei-me do Obdulio Varela, líder do time uruguaio em 1950, que depois da tragédia do Maraca vagou anônimo pelos botecos de Copacabana e, entre bêbados, confessou-se arrependido por fazer aquela gente tragar a própria sarjeta envelhecida sob o sol dos tristes trópicos. Ter um filho zagueiro deve ser sofrido, ter um filho lateral que avança, meu Deus, o pai segura o braço do sofá como quem amarra os pés do ponta arisco que parte para cima do seu amado menino, bola nas costas...
Ter um filho volante, só prejuízo, por mais que faça, o comentarista da TV estragará a janta, dizendo que é ótimo na contenção, mas péssimo na saída de bola... Se for bom na saída de jogo, distribuindo feito um Geraldo (Flamengo), o único que jogava assobiando, três dedos o tempo todo, dirão que deixa muito espaço... Ter um filho atacante, nas fases de jejum, também é desgraça, dá vontade de ir lá, na calada da noite, na véspera do clássico, e, por amor filial, ampliar o tamanho das traves. Ter um filho goleiro, então, meu velho e bom Palácio Ronconi, é um orgulho e um suplício, ficar correndo para um lado e outro do sofá como um goleiro de brinquedo, tentando fechar o ângulo da bola fatal. Descanse em paz, amigo Ronconi -faleceu, vítima de infarto aos 47min do segundo-, que o menino Marcão vai sempre pular, do alto, sem medo da vida, nos seus braços. É, a vida não tem placa de acréscimo, a vida é sempre desconto.

xico.folha@uol.com.br


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