São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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OLIMPÍADA
Sem-teto diz que há operação de "limpeza" de áreas nobres, sobretudo de Homebush Bay, coração olímpico da cidade
Sydney retira das ruas os "indesejáveis"

FÁBIO VICTOR E
JOSÉ GERALDO COUTO

ENVIADOS ESPECIAIS A BRISBANE

Cabelos até os ombros, barba até o meio do peito, dentes faltando: a figura de John Day, 46, corresponde ao apelido carinhoso que ganhou dos companheiros do albergue diurno 139 Club: "Cave Man" (homem das cavernas).
Até a terça-feira da semana passada, Cave Man era um dos cerca de 2.000 "homeless" (sem-teto) de Sydney. Hoje engrossa o contingente dos desabrigados de Brisbane, cidade onde pretende ficar quatro ou cinco meses.
Cave Man garante que deixou Sydney por motivos pessoais (desentendeu-se com a turma com quem vivia) e não por imposição da polícia, mas afirma que existe uma operação de "limpeza" das áreas nobres, sobretudo de Homebush Bay, o coração olímpico da cidade, com o objetivo de afastar feios, sujos e malvados dos olhos dos visitantes.
"A polícia não tem agido propriamente com violência. Eles só dizem: "Se você não sair daqui, eu vou prendê-lo". E as pessoas saem", resume Cave Man.
Com seu clima acolhedor, Brisbane tem sido apontada pela imprensa local e pelos próprios sem-teto como o principal destino desses indesejados, que as autoridades nacionais e olímpicas querem varrer para debaixo do tapete.
Por sua vez, o Departamento de Bem-Estar Social australiano nega que esteja retirando os sem-teto das ruas de Sydney. Segundo as autoridades, os mendigos estão sendo encaminhados para abrigos governamentais.
De acordo com as autoridades, os sem-teto estarão sujeitos à prisão, como qualquer outro cidadão, se estiverem circulando em área olímpica sem credenciamento ou sem ingresso para as atrações esportivas. A medida, alegam, é apenas uma questão de segurança.

Abrigos
Nos lugares que abrigam ou dão assistência aos "homeless", a primeira coisa que impressiona o visitante brasileiro é a diferença entre a situação de um sem-teto na Austrália e no Brasil.
Segundo Bruce Robinson, gerente do Pindari Center, o maior alojamento do Exército da Salvação em Brisbane, o "excluído" australiano recebe do Estado uma série de subsídios, como seguro-desemprego e, nos casos em que isso se aplica, pensão para idosos ou deficientes.
O Pindari Center tem 144 camas, mas hospeda em média apenas 80 pessoas por noite. O número de leitos ociosos se explica pelo preço da diária cobrada, oito dólares australianos (cerca de R$ 8,20), considerado alto pelos sem-teto. O alojamento da instituição "rival", a St. Vincent de Paul, cobra apenas dois dólares australianos por noite.
Outro movimentado ponto de encontro dos "homeless" de Brisbane é o 139 Club, localizado na região central da cidade.
Por ele passam diariamente cerca de 250 desabrigados, que ali têm acesso a sala de jogos, sala de televisão, quintal arborizado, camas para dormir durante o dia e, ainda, quatro refeições diárias.
Na última quarta, por exemplo, o "chá da manhã", servido às 10h30, continha um sanduíche quente, um pedaço de melancia e uma torta. Tudo isso de graça: as únicas refeições pagas são o café da manhã (um dólar australiano) e o almoço (1,5 dólar australiano).
A exemplo do Exército da Salvação e da St. Vincent de Paul (leia texto nesta página), o 139 Club, que existe há 27 anos, tem uma parte substancial de seus gastos (75%) habituais custeada pelo governo da Austrália.
Um cartaz na entrada do 139 Club avisa que armas e drogas não são permitidas no recinto. No Pindari Center, segundo seu gerente operacional, Bruce Robinson, os "clientes" são convidados a entregá-las na entrada, mas não são revistados.
"Um dos aspectos negativos de viver nas ruas é que você fica mais vulnerável à violência e ao crime", diz o sem-teto Nick Smith, 26, que frequenta o 139 Club.
"Fui violado sexualmente, prestei queixa à polícia, e eles nem ligaram. Mas, quando me pegaram com um mero cartão de estacionamento roubado, fui parar na cadeia", queixa-se ele.
Para Cave Man, isso não é problema: "Sabendo usar a cabeça, você não se mete em encrenca".
Com ou sem violência, o fato é que um típico "homeless" australiano vive com mais fartura e conforto que muitas famílias de trabalhadores brasileiros.
A comparação entre as duas situações suscita uma pergunta inevitável: afinal, o que leva uma pessoa a viver nas ruas num dos países de menor densidade demográfica do mundo (2,3 habitantes por km2), no qual o desemprego não chega a 7%?
"São vários os motivos", diz Nikki O" Leary, supervisora de Bem-Estar do 139 Club. "Má situação familiar, desajuste psicológico e, principalmente, dependência de drogas e álcool."
As histórias individuais são as mais diversas. Cave Man, por exemplo, divide sua vida de sem-teto em duas fases distintas.
Em 1974, aos 20 anos, no rescaldo do movimento hippie, resolveu viver nas ruas "pela aventura". Alguns anos depois, decidiu casar e "levar uma vida decente".
Montou uma oficina de produção de objetos de cobre e bronze, contratando apenas "homeless" como empregados. "Vivi 15 anos na linha. Depois, minha mulher torrou tudo e me abandonou, e eu voltei para as ruas", resume.
Hoje diz que rejeitou ofertas de emprego ("a maioria de vendedor") e que é sem-teto por opção, embora tenha o projeto de remontar uma oficina própria.
"Prefiro viver entre eles", diz, apontando os colegas em volta. "Eles não são bons da cabeça muitas vezes, mas são muito mais honestos e solidários que qualquer outro grupo social que conheço."
Nick Smith, por sua vez, saiu de casa por não conseguir conviver com os pais. "Eles queriam controlar minha vida. Era insuportável. Eles têm uma casa com seis quartos, e nenhum dos três filhos quer morar com eles."
Nick -que, como todos os outros "homeless", hesitou em informar seu nome- largou o curso superior de pedagogia na metade e tornou-se um sem-teto. "Uma vez que você sai do sistema, é muito difícil voltar", define ele.
Quanto ao "pescador de passarinhos" Brandon Thomas, outro frequentador do 139, não se pode dizer que a vida nas ruas seja propriamente uma opção.
Aos 14 anos, ele se viciou em heroína, droga da qual não conseguiu se separar até hoje, aos 38.
"Ainda estou tentando me limpar. Não gosto de viver na rua, mas, por minhas próprias falhas, nunca tive dinheiro para pagar aluguel. Daqui a duas semanas, completo 39 anos. Mais um ano e estarei com 40. Isso não é vida para ninguém", diz.
A aparente letargia some quando Thomas começa a perguntar sobre o Brasil.
"É verdade que lá matam uma média de dez crianças por dia?", pergunta. "Tem mesmo tantas crianças sem casa como dizem?"
Incrédulo ante a descrição do problema brasileiro, ele se anima, começa a dar lições e volta a falar da sua vida. "Por que não constroem uma vila para colocar essas crianças e não as ensinam a plantar, a pescar, a ler, a escrever? Eu, por exemplo, pesco diariamente."
Pede licença e vai buscar uma bolsa com seus pertences. Retira um rolo de linha, com um anzol na ponta. Sai novamente, volta com um saco de pão e passa a demonstrar a sua técnica.
"Você coloca o pão no anzol, o passarinho come o pão, você puxa a linha, pega o passarinho, prepara o fogo, faz o churrasco e mata a fome", explica.
Apesar da "independência" proporcionada por seu peculiar método de caça e pesca (o anzol também serve para fisgar peixes no rio Brisbane), Brandon Thomas é um assíduo frequentador dos albergues.
Considera natural que os sem-teto tenham fartura nesses locais e mostra que o óbvio, sobreposto à realidade brasileira, surge como clarividência.
"Se uma pessoa está com fome e não tem dinheiro para comprar comida, ela vai roubar. Se você dá comida para ela, ela não rouba." E continua, com um ditado: "Your trash is my treasure (seu lixo é meu tesouro)".
Ao perceber que a reportagem da Folha está indo embora do albergue, o pescador de passarinhos deixa o que está fazendo e caminha em direção aos repórteres. Coloca a mão direita, coberta de tatuagens -como quase seu corpo todo-, no ombro de um deles e pergunta: "Você me promete que vai ensinar as crianças no Brasil a pescar passarinhos?"


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