|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OLIMPÍADA
Sem-teto diz que há operação de "limpeza" de áreas nobres, sobretudo de Homebush Bay, coração olímpico da cidade
Sydney retira das ruas os "indesejáveis"
FÁBIO VICTOR E
JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADOS ESPECIAIS A BRISBANE
Cabelos até os ombros, barba
até o meio do peito, dentes faltando: a figura de John Day, 46, corresponde ao apelido carinhoso
que ganhou dos companheiros
do albergue diurno 139 Club: "Cave Man" (homem das cavernas).
Até a terça-feira da semana passada, Cave Man era um dos cerca
de 2.000 "homeless" (sem-teto)
de Sydney. Hoje engrossa o contingente dos desabrigados de
Brisbane, cidade onde pretende
ficar quatro ou cinco meses.
Cave Man garante que deixou
Sydney por motivos pessoais (desentendeu-se com a turma com
quem vivia) e não por imposição
da polícia, mas afirma que existe
uma operação de "limpeza" das
áreas nobres, sobretudo de Homebush Bay, o coração olímpico
da cidade, com o objetivo de afastar feios, sujos e malvados dos
olhos dos visitantes.
"A polícia não tem agido propriamente com violência. Eles só
dizem: "Se você não sair daqui, eu
vou prendê-lo". E as pessoas
saem", resume Cave Man.
Com seu clima acolhedor, Brisbane tem sido apontada pela imprensa local e pelos próprios sem-teto como o principal destino desses indesejados, que as autoridades nacionais e olímpicas querem
varrer para debaixo do tapete.
Por sua vez, o Departamento de
Bem-Estar Social australiano nega que esteja retirando os sem-teto das ruas de Sydney. Segundo as
autoridades, os mendigos estão
sendo encaminhados para abrigos governamentais.
De acordo com as autoridades,
os sem-teto estarão sujeitos à prisão, como qualquer outro cidadão, se estiverem circulando em
área olímpica sem credenciamento ou sem ingresso para as atrações esportivas. A medida, alegam, é apenas uma questão de segurança.
Abrigos
Nos lugares que abrigam ou dão
assistência aos "homeless", a primeira coisa que impressiona o visitante brasileiro é a diferença entre a situação de um sem-teto na
Austrália e no Brasil.
Segundo Bruce Robinson, gerente do Pindari Center, o maior
alojamento do Exército da Salvação em Brisbane, o "excluído"
australiano recebe do Estado uma
série de subsídios, como seguro-desemprego e, nos casos em que
isso se aplica, pensão para idosos
ou deficientes.
O Pindari Center tem 144 camas, mas hospeda em média apenas 80 pessoas por noite. O número de leitos ociosos se explica pelo
preço da diária cobrada, oito dólares australianos (cerca de R$
8,20), considerado alto pelos sem-teto. O alojamento da instituição
"rival", a St. Vincent de Paul, cobra apenas dois dólares australianos por noite.
Outro movimentado ponto de
encontro dos "homeless" de Brisbane é o 139 Club, localizado na
região central da cidade.
Por ele passam diariamente cerca de 250 desabrigados, que ali
têm acesso a sala de jogos, sala de
televisão, quintal arborizado, camas para dormir durante o dia e,
ainda, quatro refeições diárias.
Na última quarta, por exemplo,
o "chá da manhã", servido às
10h30, continha um sanduíche
quente, um pedaço de melancia e
uma torta. Tudo isso de graça: as
únicas refeições pagas são o café
da manhã (um dólar australiano)
e o almoço (1,5 dólar australiano).
A exemplo do Exército da Salvação e da St. Vincent de Paul (leia
texto nesta página), o 139 Club,
que existe há 27 anos, tem uma
parte substancial de seus gastos
(75%) habituais custeada pelo governo da Austrália.
Um cartaz na entrada do 139
Club avisa que armas e drogas
não são permitidas no recinto. No
Pindari Center, segundo seu gerente operacional, Bruce Robinson, os "clientes" são convidados
a entregá-las na entrada, mas não
são revistados.
"Um dos aspectos negativos de
viver nas ruas é que você fica mais
vulnerável à violência e ao crime",
diz o sem-teto Nick Smith, 26, que
frequenta o 139 Club.
"Fui violado sexualmente, prestei queixa à polícia, e eles nem ligaram. Mas, quando me pegaram
com um mero cartão de estacionamento roubado, fui parar na
cadeia", queixa-se ele.
Para Cave Man, isso não é problema: "Sabendo usar a cabeça,
você não se mete em encrenca".
Com ou sem violência, o fato é
que um típico "homeless" australiano vive com mais fartura e conforto que muitas famílias de trabalhadores brasileiros.
A comparação entre as duas situações suscita uma pergunta inevitável: afinal, o que leva uma pessoa a viver nas ruas num dos países de menor densidade demográfica do mundo (2,3 habitantes
por km2), no qual o desemprego
não chega a 7%?
"São vários os motivos", diz
Nikki O" Leary, supervisora de
Bem-Estar do 139 Club. "Má situação familiar, desajuste psicológico e, principalmente, dependência de drogas e álcool."
As histórias individuais são as
mais diversas. Cave Man, por
exemplo, divide sua vida de sem-teto em duas fases distintas.
Em 1974, aos 20 anos, no rescaldo do movimento hippie, resolveu viver nas ruas "pela aventura". Alguns anos depois, decidiu
casar e "levar uma vida decente".
Montou uma oficina de produção de objetos de cobre e bronze,
contratando apenas "homeless"
como empregados. "Vivi 15 anos
na linha. Depois, minha mulher
torrou tudo e me abandonou, e eu
voltei para as ruas", resume.
Hoje diz que rejeitou ofertas de
emprego ("a maioria de vendedor") e que é sem-teto por opção,
embora tenha o projeto de remontar uma oficina própria.
"Prefiro viver entre eles", diz,
apontando os colegas em volta.
"Eles não são bons da cabeça muitas vezes, mas são muito mais honestos e solidários que qualquer
outro grupo social que conheço."
Nick Smith, por sua vez, saiu de
casa por não conseguir conviver
com os pais. "Eles queriam controlar minha vida. Era insuportável. Eles têm uma casa com seis
quartos, e nenhum dos três filhos
quer morar com eles."
Nick -que, como todos os outros "homeless", hesitou em informar seu nome- largou o curso superior de pedagogia na metade e tornou-se um sem-teto.
"Uma vez que você sai do sistema,
é muito difícil voltar", define ele.
Quanto ao "pescador de passarinhos" Brandon Thomas, outro
frequentador do 139, não se pode
dizer que a vida nas ruas seja propriamente uma opção.
Aos 14 anos, ele se viciou em heroína, droga da qual não conseguiu se separar até hoje, aos 38.
"Ainda estou tentando me limpar. Não gosto de viver na rua,
mas, por minhas próprias falhas,
nunca tive dinheiro para pagar
aluguel. Daqui a duas semanas,
completo 39 anos. Mais um ano e
estarei com 40. Isso não é vida para ninguém", diz.
A aparente letargia some quando Thomas começa a perguntar
sobre o Brasil.
"É verdade que lá matam uma
média de dez crianças por dia?",
pergunta. "Tem mesmo tantas
crianças sem casa como dizem?"
Incrédulo ante a descrição do
problema brasileiro, ele se anima,
começa a dar lições e volta a falar
da sua vida. "Por que não constroem uma vila para colocar essas
crianças e não as ensinam a plantar, a pescar, a ler, a escrever? Eu,
por exemplo, pesco diariamente."
Pede licença e vai buscar uma
bolsa com seus pertences. Retira
um rolo de linha, com um anzol
na ponta. Sai novamente, volta
com um saco de pão e passa a demonstrar a sua técnica.
"Você coloca o pão no anzol, o
passarinho come o pão, você puxa a linha, pega o passarinho, prepara o fogo, faz o churrasco e mata a fome", explica.
Apesar da "independência"
proporcionada por seu peculiar
método de caça e pesca (o anzol
também serve para fisgar peixes
no rio Brisbane), Brandon Thomas é um assíduo frequentador
dos albergues.
Considera natural que os sem-teto tenham fartura nesses locais e
mostra que o óbvio, sobreposto à
realidade brasileira, surge como
clarividência.
"Se uma pessoa está com fome e
não tem dinheiro para comprar
comida, ela vai roubar. Se você dá
comida para ela, ela não rouba." E
continua, com um ditado: "Your
trash is my treasure (seu lixo é
meu tesouro)".
Ao perceber que a reportagem
da Folha está indo embora do albergue, o pescador de passarinhos deixa o que está fazendo e
caminha em direção aos repórteres. Coloca a mão direita, coberta
de tatuagens -como quase seu
corpo todo-, no ombro de um
deles e pergunta: "Você me promete que vai ensinar as crianças
no Brasil a pescar passarinhos?"
Texto Anterior: Agenda Próximo Texto: Governo subvenciona albergues Índice
|