São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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O Cinema Paradiso de Vampeta

Como no filme de Giuseppe Tornatore, prédio comprado pelo atleta guarda a memória de uma cidade
Cléo Velleda/Folha Imagem
O volante Vampeta observa pedaço de filme antigo na sala de projeção do cinema que adquiriu


FÁBIO VICTOR
enviado especial a Nazaré (BA)

O volante corintiano Marcos André Batista Santos, o Vampeta, 24, está resgatando uma história que dá um filme.
Sem nunca ter tido qualquer interesse por cinema, o jogador está reformando um prédio que já foi o centro da vida de sua Nazaré natal.
Inaugurado em 1927, o cinema Rio Branco é uma versão baiana do "Cinema Paradiso", do diretor italiano Giuseppe Tornatore.
Na fita, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1989, o esplendor e a decadência de um cinema numa aldeia da Sicília, único divertimento das pessoas do lugar, são os condutores de uma fábula sobre nostalgia e desprezo pela memória.
Vampeta nem se dá conta, mas Nazaré (município de 25 mil habitantes no recôncavo baiano, a 220 km de Salvador, 70 km se tomado um "atalho" pela Baía de Todos os Santos) tem tudo a ver com Giancaldo, a aldeia siciliana de "Cinema Paradiso".
"Nunca vi esse filme, já me falaram muito dele. Será que eu encontro em locadora?", pergunta o jogador, que não esconde sua indiferença pela tela grande (leia entrevista na pág. 4-8).
Mas, ao tomar a iniciativa, movida, segundo ele, por amor à cidade, o volante, um dos destaques do Campeonato Brasileiro de 98 e da nova seleção nacional de Wanderley Luxemburgo, trouxe à tona um passado cinematográfico.
O Rio Branco data de uma época em que Nazaré, hoje pobre e decadente, escoava para a capital, pelo rio Jaguaripe, boa parte da produção agrícola do interior da Bahia, que chegava de trem até ali.
Entre o final do século passado e o início deste, era uma cidade rica e próspera. Além do Rio Branco, há ainda hoje pelo menos dez prédios históricos da mesma época, todos com características arquitetônicas de grande valor.
O cinema de Vampeta começou a ser construído em 1925 e levou dois anos para ser concluído.
Durante as primeiras décadas de vida, o Rio Branco foi um misto de cinema e farmácia homeopática.
O seu fundador, o homeopata Felisberto Ribeiro Soares, mantinha nos fundos do prédio uma botica, onde atendia os pacientes durante o dia.
À noite, o prédio virava cinema.
Filha do fundador, Norma Ribeiro Soares, 79, assumiu a administração da sala quando o pai morreu, em 1953, e é um arquivo vivo da história do Rio Branco.
Com 7 anos de idade, dona Norma, como é conhecida, estava presente à inauguração da sala, quando foi exibido um documentário sobre o barão de Rio Branco, à tarde, e o filme "Uma Noite de Amor", à noite.
Entre várias histórias, ela recorda com clareza do episódio, nos idos dos anos 20, em que um "tabaréu" (caipira), inconformado com o bandido de um filme mudo, descarregou o revólver na tela.
"Meu pai teve que comprar outra no dia seguinte."
Hoje, professora aposentada, dona Norma torce pelo sucesso da empreitada de Vampeta.
"Aquilo é a luz de minha vida, é um pedaço de mim. Estou orientando o máximo que eu posso para que ele (o Rio Branco) continue do jeito que era", diz ela, mesmo reconhecendo que "a televisão e o vídeo acabaram com o cinema".
Mas não são só os "causos" passados no Rio Branco que lembram o espírito de "Cinema Paradiso".
O cinema de Nazaré também teve o seu "Alfredo" -o operador de projeção retratado no filme italiano. O último foi o carpinteiro e marceneiro Rui Sampaio, 42, que, como o personagem de Philippe Noiret no filme de Tornatore, também foi desprezado após o fechamento da sala.
A reportagem da Folha encontrou Sampaio fazendo serviços em uma obra no centro de Nazaré, nu da cintura para cima, desiludido com a sua antiga profissão.
"Eu fazia tudo naquele cinema. Além de operar o projetor, nas horas vagas eu lavava chão, consertava o forro, pintava..."
"Não gosta mais de cinema?"
"Gosto..., mas hoje não gosto mais, não. Tomei ódio."
"E o motivo?"
"Faltou consideração na vendagem. Venderam o cinema e não lembraram de mim. Podiam ter me dado alguma coisa", reclama Sampaio, que dedicou 12 anos de trabalho ao Rio Branco.
A família Soares teve o cinema até 1960, quando o arrendou.
Em 1971, o Rio Branco foi desativado e virou abrigo para uma família da cidade.
Ficou sem funcionar até 1985, quando foi adquirido pela família de imigrantes turcos Nagib Boeri, que o manteve até 1996, quando fechou pela última vez suas portas.
Um igreja evangélica chegou a fazer uma proposta para comprá-lo, mas um pequeno movimento na cidade e a ameaça da prefeitura em desapropriar o imóvel fizeram com que o negócio fracassasse.
Comprado por Vampeta em outubro de 97, dos Nagib Boeri, por R$ 80 mil, o novo Rio Branco será transformado em centro cultural.



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