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FUTEBOL
Os ricos também jogam
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O personagem da semana
chama-se Cacá -ou Kaka, como ele prefere, com a tolice que só perdoamos nos muito
jovens ou nos muito velhos.
Seus dois belos gols salvaram
da mediocridade a final do Rio-São Paulo, quarta-feira, e levaram ao delírio a massa que lotou o Morumbi.
Admirei os gols, que revelaram refinamento técnico e tranquilidade, mas o que mais me
tocou foi ver o sorriso incrédulo
do garoto depois de fazê-los,
olhando para a arquibancada
em festa como se estivesse sonhando.
Imagine a vertigem de poder,
a felicidade selvagem de um
adolescente que, com um par de
movimentos precisos e elegantes, faz 70 mil pessoas dançarem
de alegria.
Naquele olhar de menino passavam já, talvez, as imagens de
um futuro de glórias: gols, manchetes, conquistas, fortuna.
Claro que quase nunca a carreira de um futebolista se resume a isso. Mas, se a um garoto
de 18 anos não for permitido sonhar, a quem será?
Essa estrelinha aí em cima é
para enganar o leitor. Pensou
que eu fosse mudar de assunto?
Nada disso. O caso Cacá merece
um bocado de reflexão.
Seu perfil sócio-econômico-cultural é significativo. Rapaz
de classe média, com segundo
grau completo, filho de engenheiro, morador do Morumbi e
sócio do São Paulo desde criancinha, poderia ser rotulado maldosamente de "craque mauricinho", da linhagem de um Caio
(hoje no Santos).
Raí e Leonardo, que têm um
perfil semelhante, escapam do
estereótipo graças a sua aguda
consciência coletiva.
Cacá ainda é muito jovem para que possamos saber que tipo
de atleta e de homem será.
Pode seguir a tendência majoritária entre os jogadores de hoje, que só falam em Deus e só
pensam em dinheiro (e em carros e mulheres, ambos vistos como objetos que o dinheiro pode
comprar).
Ou, ao contrário, pode aproveitar as facilidades que teve na
vida para tornar-se um cidadão
consciente e talvez até um autêntico líder.
Não deve ser por acaso que todos os jogadores citados acima
surgiram ou se destacaram no
São Paulo.
No tricolor do Morumbi ocorreu um processo curioso.
Clube tradicionalmente de elite, sua torcida se "popularizou"
acentuadamente nas últimas
décadas, incorporando trabalhadores, jovens de periferia e
parte da massa lúmpen que forma o grosso das torcidas ditas
organizadas.
Mas a imagem de time de elite
permanece, como um resquício
nostálgico do passado, e se reflete no tipo de jogador que a torcida mais identifica com o clube:
o bom moço branco e de classe
média.
O próprio Juninho (hoje no
Vasco), cuja origem social desconheço, corresponde perfeitamente a essa imagem, assim como o goleiro Rogério.
É como se o filho do lorde Didu Morumbi, personagem do
inesquecível "Show de Rádio"
da Jovem Pan, entrasse em campo como jogador.
A ascensão desse tipo de futebolista, no Morumbi ou fora dele, coloca em xeque um preconceito social às avessas.
Admiradores do futebol criativo e cheio de ginga dos garotos
vindos das camadas mais pobres (em geral negros e mulatos), de Garrincha a Romário,
tendemos a ver com desconfiança ou desdém os filhos da elite,
que seriam meninos mimados,
formados em clubes burgueses
ou escolinhas, sem fibra e de cintura dura.
No episódio da escolinha de
futebol do filme "Boleiros", de
Ugo Giorgetti, temos um exemplo admirável desse mito: a mãe
de um garoto quer mudar o horário dos treinos para que o filho possa frequentar terapia, fazer curso de inglês etc.
Cacá está mostrando que não
é bem assim.
O que faz o bom jogador não é
a cor da pele, a renda familiar
ou o nível de escolaridade.
A meu ver, o que é preciso,
além do talento natural, é tempo livre e disponibilidade, nos
anos de formação, para brincar
com a bola, fazer dela uma paixão, uma ciência, uma festa.
Paradoxalmente, é muito
mais raro um garoto de classe
média ter essas condições e essa
gana do que um moleque sem
eira nem beira.
Sem a esperança de um diploma ou de uma profissão facilitada pelas boas relações, este último entrega-se à bola como se
ela fosse ao mesmo tempo uma
droga que só faz bem e um caminho para o futuro. Voltaremos ao assunto.
E-mail : jgcouto@uol.com.br
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