São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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FUTEBOL
Os ricos também jogam

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O personagem da semana chama-se Cacá -ou Kaka, como ele prefere, com a tolice que só perdoamos nos muito jovens ou nos muito velhos.
Seus dois belos gols salvaram da mediocridade a final do Rio-São Paulo, quarta-feira, e levaram ao delírio a massa que lotou o Morumbi.
Admirei os gols, que revelaram refinamento técnico e tranquilidade, mas o que mais me tocou foi ver o sorriso incrédulo do garoto depois de fazê-los, olhando para a arquibancada em festa como se estivesse sonhando.
Imagine a vertigem de poder, a felicidade selvagem de um adolescente que, com um par de movimentos precisos e elegantes, faz 70 mil pessoas dançarem de alegria.
Naquele olhar de menino passavam já, talvez, as imagens de um futuro de glórias: gols, manchetes, conquistas, fortuna.
Claro que quase nunca a carreira de um futebolista se resume a isso. Mas, se a um garoto de 18 anos não for permitido sonhar, a quem será?

Essa estrelinha aí em cima é para enganar o leitor. Pensou que eu fosse mudar de assunto? Nada disso. O caso Cacá merece um bocado de reflexão.
Seu perfil sócio-econômico-cultural é significativo. Rapaz de classe média, com segundo grau completo, filho de engenheiro, morador do Morumbi e sócio do São Paulo desde criancinha, poderia ser rotulado maldosamente de "craque mauricinho", da linhagem de um Caio (hoje no Santos).
Raí e Leonardo, que têm um perfil semelhante, escapam do estereótipo graças a sua aguda consciência coletiva.
Cacá ainda é muito jovem para que possamos saber que tipo de atleta e de homem será.
Pode seguir a tendência majoritária entre os jogadores de hoje, que só falam em Deus e só pensam em dinheiro (e em carros e mulheres, ambos vistos como objetos que o dinheiro pode comprar).
Ou, ao contrário, pode aproveitar as facilidades que teve na vida para tornar-se um cidadão consciente e talvez até um autêntico líder.
Não deve ser por acaso que todos os jogadores citados acima surgiram ou se destacaram no São Paulo.
No tricolor do Morumbi ocorreu um processo curioso.
Clube tradicionalmente de elite, sua torcida se "popularizou" acentuadamente nas últimas décadas, incorporando trabalhadores, jovens de periferia e parte da massa lúmpen que forma o grosso das torcidas ditas organizadas.
Mas a imagem de time de elite permanece, como um resquício nostálgico do passado, e se reflete no tipo de jogador que a torcida mais identifica com o clube: o bom moço branco e de classe média.
O próprio Juninho (hoje no Vasco), cuja origem social desconheço, corresponde perfeitamente a essa imagem, assim como o goleiro Rogério.
É como se o filho do lorde Didu Morumbi, personagem do inesquecível "Show de Rádio" da Jovem Pan, entrasse em campo como jogador.
A ascensão desse tipo de futebolista, no Morumbi ou fora dele, coloca em xeque um preconceito social às avessas.
Admiradores do futebol criativo e cheio de ginga dos garotos vindos das camadas mais pobres (em geral negros e mulatos), de Garrincha a Romário, tendemos a ver com desconfiança ou desdém os filhos da elite, que seriam meninos mimados, formados em clubes burgueses ou escolinhas, sem fibra e de cintura dura.
No episódio da escolinha de futebol do filme "Boleiros", de Ugo Giorgetti, temos um exemplo admirável desse mito: a mãe de um garoto quer mudar o horário dos treinos para que o filho possa frequentar terapia, fazer curso de inglês etc.
Cacá está mostrando que não é bem assim.
O que faz o bom jogador não é a cor da pele, a renda familiar ou o nível de escolaridade.
A meu ver, o que é preciso, além do talento natural, é tempo livre e disponibilidade, nos anos de formação, para brincar com a bola, fazer dela uma paixão, uma ciência, uma festa.
Paradoxalmente, é muito mais raro um garoto de classe média ter essas condições e essa gana do que um moleque sem eira nem beira.
Sem a esperança de um diploma ou de uma profissão facilitada pelas boas relações, este último entrega-se à bola como se ela fosse ao mesmo tempo uma droga que só faz bem e um caminho para o futuro. Voltaremos ao assunto.
E-mail : jgcouto@uol.com.br

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