São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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Sargentão nasceu no pátio do colégio


Adorado pelos ex-alunos, Scolari dividia o tempo entre as aulas e o Caxias, onde era conhecido como Roscão


DO ENVIADO A CAXIAS DO SUL

Corria o ano de 1978, e o colégio Cristóvão de Mendoza era um templo da educação no interior do Rio Grande do Sul, com seus 6.000 alunos espalhados por três enormes pavilhões num terreno de três hectares.
Insatisfeita com o desempenho dos 17 professores de educação física da instituição, que estariam faltando a muitas aulas e se dedicando menos do que deveriam, a diretora Karla Michielon convocou uma reunião com todos.
No meio do encontro, um dos repreendidos pediu a palavra e desafiou a chefe.
"Dona Karla, dou todo o meu esforço no trabalho e não concordo com isso. Daqui a alguns anos, a senhora vai estar atrás de um balcão, aposentada, enquanto eu serei conhecido pelo mundo."
A audácia do rapaz bigodudo surpreendeu os colegas e emudeceu a diretora. Pouco mais de 20 anos depois, a profecia se fez, e Luiz Felipe Scolari, o revoltoso, é hoje o técnico da seleção de futebol mais famosa do planeta.
Quase tudo em "Felipão" que hoje empolga ou revolta a torcida brasileira começou a ganhar forma naquele tempo.
Foi no pátio e no ginásio do Cristóvão de Mendoza, onde ensinou de 1974 a 1980, que o professor Felipe começou a se transformar no "sargentão Scolari", o técnico ao mesmo tempo durão e colega, destemperado e espirituoso.
"Ele puxava demais nas aulas, tirava o nosso couro. Não queria saber se tu eras guria, fraca. Tratava as meninas como meninos, mas era uma pessoa fantástica. Se tu pedisses uma explicação, ele se debulhava, parava a aula, vinha explicar com a maior paciência", recorda Maria Lúcia de Souza Angeli, 43, aluna de Scolari por dois anos no magistério (74 e 75) e hoje vice-diretora do Cristóvão.
A atual diretora da escola, Laura Jane Borges Machado, 45, que fazia o primeiro científico em 74, tem lembranças semelhantes. "Ele era exatamente como é hoje, exigente e competente. Quando dava aula para um grupo feminino, parecia que estava tratando com meninos, porque ele nos matava. Saíamos das aulas doloridas", conta.
Scolari passava aos estudantes uma forte carga de exercícios e os colocava para dar voltas na quadra da escola. No curso de magistério, era responsável pelas aulas práticas (futebol, vôlei, basquete etc.), enquanto o colega Júlio Espinosa, hoje técnico do Remo, cuidava da parte teórica -tinha a mania de ler o horóscopo para os alunos antes de iniciar as classes.
A professora Rosana Borchadt, 39, lembra de Scolari toda vez que a sua rótula volta a incomodar. Numa aula de educação física em 78, ela levou uma queda e torceu o joelho. "Ele me levantou, me carregou e passou remédio no local. Depois disso, sempre perguntava como estava o machucado."
Por mais dedicação que tivesse com os alunos, Scolari não era propriamente o professor full-time. Era obrigado a dividir seu tempo entre o colégio e o estádio do Caxias, separados por menos de 1 km, trajeto que ele muitas vezes fazia a pé -quando não usava o seu Fusca 1.300 azul claro.
Por causa do clube, que defendeu por sete anos, faltava a várias aulas. Nos arquivos do Cristóvão, há dezenas de "justificativas de faltas sem apresentação de atestado médico", nas quais o motivo alegado na imensa maioria das vezes era "viagem".
Quando apresentava um atestado médico, normalmente o problema era gastroenterológico.
E, às vezes, conforme relatos de ex-professores que pediram anonimato, largava aulas na metade para não perder o treino e partia em disparada para o estádio.
Na equipe grená do Caxias, Scolari foi um zagueiro de muita liderança e pouca técnica.
Por seu futebol vigoroso e limitado, era e até hoje é conhecido pelos torcedores locais como "Roscão", em referência aos chutes enviesados que pareciam ir em uma direção e tomavam outra completamente diferente.
Chegou ao clube em 1973, quando foi tratar da contratação do meio-campista Maurício, de quem era procurador e colega no Aimoré. Há duas versões para o fato de Scolari ter acabado ficando junto no Caxias: os diretores do clube dizem que gostaram da postura dele; o historiador Jorge Roth conta que o zagueiro só topou vender Maurício se o time ficasse com ele também.
O fato é que Maurício passou seis meses no Caxias e Scolari, mais de seis anos, de 1973 a 1979, período em que fez só um gol.
"Ele demonstrou uma personalidade enorme na negociação e aí perguntamos se ele não queria ficar. O técnico [Sérgio Moacir Torres", disse que não precisava dele, que queria só o Maurício, mas ele se tornou nosso capitão e líder", diz Enio Costamilan, 65, na época diretor de futebol do Caxias, cargo que hoje ocupa novamente.
A divisão entre o colégio e o clube fazia por vezes com que os trabalhos de Scolari se confundissem. Técnico das escolinhas de futebol do Cristóvão de Mendoza, indicava para as divisões de base do Caxias os melhores jogadores de suas equipes e dos adversários.
Foi o que aconteceu em 1974, quando um meio-campista avançado chamado Adenor Leonardo Bachi, que defendia o infantil do colégio Guarani num jogo contra o Cristóvão chamou a atenção do professor Luiz Felipe.
Bachi, que viria a ser jogador do Juventude e rival de Scolari nos tradicionais Ca-Ju (o clássico contra o Caxias), hoje é técnico do Grêmio e famoso no Brasil por seu apelido, Tite.
"Lembro dele nos jogos intercolegiais, na beira do campo, com gestos intensos. Nos assustava, pois éramos garotos, mas já naquela época era uma figura muito carismática", recorda Tite, que começou no Caxias, por recomendação de Scolari, chegando até a jogar junto com o zagueiro.
Tite também estudou no Cristóvão, mas não se lembra de ter tido aulas com Scolari.
Outro aluno do tradicional colégio estadual foi Celso Roth, treinador do Santos, que informou não ter sido aluno de Scolari e se negou à reportagem a fazer qualquer comentário sobre esse período de sua vida.
Quem tem muito para contar é Eloi Köhler, 52. Professor de educação física do Cristóvão como Scolari, era um dos melhores amigos do técnico da seleção.
Köhler, chamado de "Chuchu" pelos colegas da época, fazia bicos com Scolari para completar o orçamento mensal.

Gringo
Eram tempos bicudos para o recém-casado Luiz Felipe. No Colégio, recebia em torno de dois salários mínimos, que, em valores atualizados de 2000, correspondiam a R$ 690,00 -recebia ainda o salário e os bichos do Caxias.
E já tinha a fama de pão-duro que o acompanha até hoje, causa do apelido "Gringo", como os gaúchos chamam os muquiranas.
Um dos trabalhos paralelos contava com a ajuda do Caxias, que cedia a sala de musculação para que Scolari, Köhler e um terceiro colega, Ernani Finger, dessem aulas para executivos.
No tempo livre, "Chuchu" e "Gringo" gostavam de ir ao Carmo Campo Clube, por trás do Cristóvão de Mendoza.
Faz anos que Köhler não conversa com Scolari, que hoje vai a Caxias de raspão, principalmente para cuidar das dezenas de imóveis que mantém na cidade.
Mas os 12 anos de amizade entre os dois fazem "Chuchu" ter uma certeza. "Na hora agá ele vai levar o Romário. O Gringo não é bobo, sabe que, se não leva, depois vão cornetear."
Hoje com 53 anos e com um salário em torno dos R$ 300 mil (não declarados), Scolari lembra daqueles tempos com uma nostalgia empolgada.
"Eu procurava colocar nos meus alunos o espírito de que é preciso ter um objetivo, como o que eu tinha, que era crescer no futebol, e de que a união encurta o caminho para alcançá-lo", disse o técnico, por intermédio de seu assessor de imprensa.
"Carrego até hoje o que eu vivi naquele tempo", declara ele, que deu também em Caxias os primeiros passos na carreira de treinador de um time adulto, ao comandar, em 1981, o Lanifício São Pedro, da comunidade de Galópolis, na Série B de um campeonato do Sesi, em que terminaram como campeões.
Em Caxias do Sul, ter sido aluno de educação física de Scolari é motivo de orgulho para muitos. A ponto de algumas ex-estudantes ouvidas pela Folha procurarem a reportagem dizendo duvidar que outros entrevistados também haviam tido aulas com ele.
No Cristóvão de Mendoza, entretanto, não há, nos corredores, quadras ou salas de aula, nenhuma foto ou lembrança da passagem do professor ilustre.
A diretora e ex-aluna espera que Scolari seja grato pelos anos que passou na escola e confia numa contribuição para cobrir uma das quatro quadras externas -há apenas uma coberta. "Bem que ele podia dar uma mão", afirma.
Enquanto a contribuição não vem por parte do treinador ou a homenagem apareça pelo lado da escola, o espírito "sargentão" de Luiz Felipe Scolari está bem vivo num pequeno cartaz pregado na parede da ante-sala dos professores, onde está escrito: "O trabalho é como barbear-se. Não interessa se você fez um ótimo trabalho hoje, terá que repetir a performance amanhã". (FÁBIO VICTOR)


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