São Paulo, segunda-feira, 11 de junho de 2001

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Quatro anos mais tarde, país vê Guga erguer pela terceira vez o troféu do Aberto da França, mas ainda não tem a menor idéia de o que fazer para perpetuar o sucesso nas quadras

a.G - d.G

Surpreso, país acorda num domingo de junho, vê um desconhecido brasileiro de 20 anos levantar pela primeira vez a taça de Roland Garros e prevê o começo de uma explosão do tênis na terra do futebol

ROBERTO DIAS
EDITOR-ASSISTENTE DE ESPORTE

O país que ontem chegou a sua primeira dezena de títulos de Grand Slams é, na verdade, o país de dois malucos que decidiram sair pelo mundo dando suas raquetadas -e deram certo.
Gustavo Kuerten, com três conquistas, e Maria Esther Bueno, com sete troféus de simples (três em Wimbledon e quatro no Aberto dos EUA), representam a mais absoluta exceção à regra de que o Brasil não é o país do tênis.
E nem caminha para ser.
Lá se vão quatro anos desde que o então desconhecido surfista cabeludo levantou sua primeira taça na quadra central de Roland Garros, e quase nada mudou.
O país vê, de novo, um caso de raro impulso -esportivo e empresarial- ser desperdiçado.
No automobilismo, o Brasil, que há uma década se gabava de ser o "país da F-1", fruto da sequência Fittipaldi-Piquet-Senna, hoje vê um ou outro alemão ganhar as corridas dominicais. O acidente da curva Tamburello descortinou o fato de que houve nada mais que três exceções consecutivas.
No tênis, igualmente visto como um esporte "de elite", o fenômeno Kuerten caminha para se encerrar nele mesmo -assim como aconteceu há cerca de 40 anos com Maria Esther Bueno.
O descompasso entre o que acontece nas quadras e fora dela é gigantesco.
O mesmo país que chegou a organizar quatro competições da ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) numa única temporada -a de 1990-, mesmo sem ter nenhum top ten no ranking mundial, não foi palco de um único torneio desse tipo nos quatro anos da era Kuerten.
Nesse intervalo, o que aconteceu foi uma candidatura vitoriosa para abrigar a Masters Cup, a competição de final de ano do tênis -reúne os oito melhores tenistas do ano-, e uma humilhante perda do direito de fazer o torneio para Sydney, por falta de infra-estrutura. E só.
A precariedade administrativa alcançou também a Copa Davis, a única chance que os brasileiros têm de ver Kuerten atuando no país em uma competição oficial.
No início do ano, no Rio de Janeiro, o país no qual Kuerten esperava popularizar o tênis (conforme afirmou após seu primeiro título em Paris) cobrava dos torcedores o ingresso mais caro do mundo.
Em troca, a Confederação Brasileira de Tênis ofereceu uma quadra montada, provisória, do mesmo jeito e no mesmo lugar onde, no ano anterior, vários torcedores ficaram do lado de fora por causa da superlotação. E igual a todas as outras onde Kuerten atuou no Brasil pela Davis.
Se não investe em infra-estrutura, o país também não o faz em "mão-de-obra". Os projetos de renovação caminham a passos de tartaruga. Um dos poucos sinais de vida surgiu a partir da ação estatal, com um projeto do Banco do Brasil, que, além de patrocinar Kuerten, mantém cinco escolinhas que atendem, diz a instituição, a 1.200 crianças.
É quase como rodar sem sair do lugar ("Há muitos jovens interessados no tênis. Se mais empresas investirem nisso, fica mais fácil formar novos atletas", afirmou, há quatro anos, Larri Passos, o técnico de Kuerten).
O resultado é que, com a anunciada aposentadoria de Jaime Oncins e com a decadência técnica de Fernando Meligeni, tende a aumentar ainda mais o fardo de Kuerten na Copa Davis a partir do ano que vem.
Enquanto isso, a Argentina, cujo programa escolar recebeu o título de "melhor do mundo" da Federação Internacional de Tênis, diz colocar anualmente 800 mil crianças em contato com a modalidade. Hoje o país tem dois jogadores entre os 20 primeiros do ranking de juniores. Não há nenhum brasileiro no grupo.
A indústria do tênis quase inexiste por aqui. O Brasil do tricampeão de Roland Garros não fabrica raquete, produz só 15% das bolinhas que consome e tem um número semelhante de quadras ao da Holanda (cerca de 15 mil).
E, como se fossem poucos os percalços, Kuerten ainda tem de enfrentar atitudes como a do Comitê Olímpico Brasileiro, o guarda-chuva de todas as modalidades, que quase o deixou fora dos Jogos Olimpícos no ano passado, tudo por causa de um conflito de patrocinadores.
À luz de tantos e tamanhos problemas, o tricampeão de Roland Garros está longe de ser exemplo de alguma coisa. É, na verdade, quase um contra-exemplo, produto de um caminho que tende a não produzir campeões.
Kuerten é o que é tendo o suporte e a companhia de um técnico, uma mãe, uma avó e um irmão, nada mais.
O catarinense veio de um Estado de fora do circuito da modalidade, sem nenhuma tradição e retrospecto no tênis nacional, uma verdadeira surpresa.
É um caso único, o homem que fez do Brasil o primeiro sócio de um seleto clube de países que já produziram um tenista campeão de uma temporada -o primeiro, desde 1985, a quebrar a hegemonia de EUA, Suécia, Romênia e da antiga Tchecoslováquia.
O ranking atual espelha também o fenômeno. Kuerten figura como um solitário brasileiro entre os atuais 50 primeiros jogadores do mundo. Dez países contam com mais jogadores nesse grupo de elite do que o Brasil.
Desses países, o maior destaque é a Espanha, que investiu pesado na modalidade e foi provavelmente a nação que mais progrediu no tênis na década passada, com oito atletas top 50.
O primeiro jogador é a nova sensação Juan Carlos Ferrero, a quem Kuerten bateu na semifinal, na sexta-feira. O segundo é Alex Corretja, o adversário de ontem.
Os argentinos também têm mais presença que o vizinho na elite -três jogadores entre os 50 melhores. Mas Kuerten, que, aliás, bateu dois argentinos na campanha em Roland Garros, é o número um do mundo.
O brasileiro tem 24 anos. Pete Sampras, como comparação, já vive sua "aposentadoria" aos 29. Hoje o Brasil não é o país do tênis. É o país do Guga. Daqui a pouco, porém, tem tudo para voltar a ser o mesmo "Brasil a.G", como se tudo não tivesse passado de um sonho -assim como hoje parecem quase um sonho os títulos de Maria Esther Bueno.


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