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CULTURA
Disco lançado no país campeão mundial de futebol reúne música clássica com inspiração em modalidades
Franceses garimpam erudição esportiva
RODRIGO BERTOLOTTO
da Reportagem Local
O lançamento de um CD de música erudita em forma de bola de
futebol e com conteúdo esportivo
pode ser explicado, em parte, pelo
gosto francês por excentricidades.
O outro motivo para a existência
de "Les Classiques du Sport" (em
português, Os Clássicos do Esporte) é o momento que vive a França,
com um "boom futebolístico" chegando até seu mercado cultural depois que a seleção nacional venceu,
como anfitriã, a Copa do Mundo.
Mesmo com o disco não chegando ao ranking dos mais vendidos, a
gravadora EMI afirma que a maior
parte dos 25 mil exemplares prensados em agosto foi vendida.
O CD, com esse número de cópias, não sai do campo das esquisitices, mas, pelo menos, tem o mérito de revelar que não só a música
popular se inspirou no esporte.
Afinal, essa associação entre eruditos e atletas vai além dos temas
olímpicos que John Williams, autor predileto de Hollywood, fez para as últimas Olimpíadas nos EUA
(Los Angeles-84 e Atlanta-96).
Apesar da composição gráfica do
CD usar elementos do futebol,
"Les Classiques du Sport" não
contém músicas sobre o esporte
mais popular do mundo. Há, sim,
faixas inspiradas em turfe, rúgbi,
tênis, golfe, iatismo e patinação.
Misturando valsas do século 19
com música influenciadas pelo futurista deste século, o disco tem
como único elo o tema esportivo.
O encontro de coisas tão distantes, porém, reservou algumas histórias curiosas, como a do músico
francês Erik Satie (1866-1925) e
suas 20 composições do ciclo para
piano "Sports e Divertissements"
(Esportes e Divertimentos).
Em 1914, o editor Lucien Vogel
queria que o álbum de ilustrações
"Les Sports" fosse acompanhado
por partituras de músicas inspiradas nos desenhos.
Primeiro, convidou o célebre
compositor clássico russo Igor
Stravinski (1882-1971), que pediu
uma fortuna pelo trabalho.
A segunda opção foi Satie, a
quem foi oferecido uma remuneração bem abaixo
da de Stravinski.
Ainda assim, Satie,
que vivia modestamente em um
quarto no bairro
parisiense Arcueil, ficou incomodado com
o valor ofertado
e só se comprometeu se pagassem menos.
Ele se trancou
em seu quarto,
cobrindo os vidros da janela
com papel. Só
deixou o aposento cinco semanas depois,
com miniaturas
musicais como "A
Corrida de Cavalos" (22 segundos)",
"O Golfe" (32 segundos), "O Tênis" (55 segundos) e "O Iatismo" (1
minuto e 11 segundos).
Sobre cada partitura, Satie
escreveu uma história (veja
quadro abaixo) e um prefácio para a obra. "Aconselho folhear este
livro com um dedo amável e sorridente, pois é uma obra de fantasia.
Não procure nela nada mais."
Considerado precursor no século passado da música clássica contemporânea, o compositor levava
uma vida totalmente anti-esportiva, e um episódio ilustra isso.
No quarto em que morava, ele
colocava as roupas -todas de veludo- em uma cadeira, deixando
vazio o armário.
Segundo seus biógrafos, Satie entrava no móvel para fazer um tal
"exercício de imobilidade", que ele
preconizou para que os pianistas
que fizessem antes de executar
uma de suas obras.
Mesmo assumindo ter sido influenciado por Satie, Arthur
Honegger (1892-1957) tinha
um perfil diferente de seu
compatriota.
Definido como um
"sportsman", Honegger compôs em
1928 o movimento sinfônico
"Rúgbi" -peça
presente no
CD- e fez a
trilha sonora
para o documentário "O
Boxe na França", que tem
um hino esportivo chamado
"Sejamos Unidos, Amplos
Peitos!".
"Les Classiques du Sport"
traz também a
marcha "A Entrada dos Gladiadores", do tcheco
Julius Fucik (1872-1916), autor desconhecido cujo principal dado
de sua biografia foi ter ser
sido o regente de uma banda
militar austro-húngara.
O restante do CD francês é todo
ocupado por valsas e polcas austríacas e francesas.
Nessa área aparece Johan Strauss
(1825-1899) e seu irmão Josef
Strauss (1827-1870) com as peças
"Sport-Polka" e "Jockey-Polka".
Na época da composição, faziam
parte de uma orquestra que excursionava pela Europa e pelos EUA e
não hesitava em aceitar encomenda de músicas, como a valsa "Acelerações", pedida por estudantes
de engenharia de Viena para um
baile. Johan Strauss, autor que levou a valsa vienense à máxima perfeição, fez a música em um dia.
Já Emile Waldteufel (1837-1915),
chamado por alguns o "Johan
Strauss francês", contribui com
três de suas valsas para dançar -a
principal é "Os Patinadores".
Para o maestro Júlio Medaglia,
"Les Classiques du Sport" peca por
uma presença ("Apesar do nome
sugestivo, a inspiração para as
"Gymnopédies' não tem nada a ver
com esporte") e uma ausência
("Debussy compôs "Jeux', que é
uma obra-prima e fala de tênis").
"Jeux" (em português, Jogo) é
um balé curto ou, como o francês
Claude Debussy (1862-1918) definiu, um "poema dançado".
Seu enredo, criado pelo bailarino
russo Vaslav Nijinski -foi o primeiro a representá-lo-, começa
com um jogo de tênis em um parque sob iluminação artificial.
A bola vai parar em um bosque
vizinho, e o jovem e as duas garotas que jogavam vão atrás dela.
Nesse momento, segundo a trama, surge um ambiente de encantamento entre os três. A peça termina abruptamente com outra bola caindo no bosque, de repente, e
assustando as personagens.
O balé, que tem duração de 18
minutos, estreou em 1913 e recebeu muitas críticas.
"É a obra mais transparente e
abstrata música deste século. Eu a
coloco entre as três obras que dão a
virada do século passado para este,
junto com "Sagração da Primavera'
de Igor Stravinski e "Pierrô Lunar',
de Arnold Schoenberg", afirma o
maestro Medaglia.
Outro ausente da compilação é o
russo Dimitri Kabalevski (1904-1987), que foi chefe do sindicato
dos músicos no regime soviético e
adepto da estética socialista. Ele
compôs "No Ginásio" e "Jogando
Bola", peças para piano.
Para aumentar a raridade, os
brasileiros só podem adquirir "Les
Classiques du Sport" se irem à
França, pois a EMI fechou seu setor de música clássica no Brasil.
²
Colaborou
Irineu Franco Perpétuo, free-lance
para a Folha
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