São Paulo, domingo, 11 de outubro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CULTURA
Disco lançado no país campeão mundial de futebol reúne música clássica com inspiração em modalidades
Franceses garimpam erudição esportiva

RODRIGO BERTOLOTTO
da Reportagem Local

O lançamento de um CD de música erudita em forma de bola de futebol e com conteúdo esportivo pode ser explicado, em parte, pelo gosto francês por excentricidades.
O outro motivo para a existência de "Les Classiques du Sport" (em português, Os Clássicos do Esporte) é o momento que vive a França, com um "boom futebolístico" chegando até seu mercado cultural depois que a seleção nacional venceu, como anfitriã, a Copa do Mundo.
Mesmo com o disco não chegando ao ranking dos mais vendidos, a gravadora EMI afirma que a maior parte dos 25 mil exemplares prensados em agosto foi vendida.
O CD, com esse número de cópias, não sai do campo das esquisitices, mas, pelo menos, tem o mérito de revelar que não só a música popular se inspirou no esporte.
Afinal, essa associação entre eruditos e atletas vai além dos temas olímpicos que John Williams, autor predileto de Hollywood, fez para as últimas Olimpíadas nos EUA (Los Angeles-84 e Atlanta-96).
Apesar da composição gráfica do CD usar elementos do futebol, "Les Classiques du Sport" não contém músicas sobre o esporte mais popular do mundo. Há, sim, faixas inspiradas em turfe, rúgbi, tênis, golfe, iatismo e patinação.
Misturando valsas do século 19 com música influenciadas pelo futurista deste século, o disco tem como único elo o tema esportivo.
O encontro de coisas tão distantes, porém, reservou algumas histórias curiosas, como a do músico francês Erik Satie (1866-1925) e suas 20 composições do ciclo para piano "Sports e Divertissements" (Esportes e Divertimentos).
Em 1914, o editor Lucien Vogel queria que o álbum de ilustrações "Les Sports" fosse acompanhado por partituras de músicas inspiradas nos desenhos.
Primeiro, convidou o célebre compositor clássico russo Igor Stravinski (1882-1971), que pediu uma fortuna pelo trabalho.
A segunda opção foi Satie, a quem foi oferecido uma remuneração bem abaixo da de Stravinski.
Ainda assim, Satie, que vivia modestamente em um quarto no bairro parisiense Arcueil, ficou incomodado com o valor ofertado e só se comprometeu se pagassem menos.
Ele se trancou em seu quarto, cobrindo os vidros da janela com papel. Só deixou o aposento cinco semanas depois, com miniaturas musicais como "A Corrida de Cavalos" (22 segundos)", "O Golfe" (32 segundos), "O Tênis" (55 segundos) e "O Iatismo" (1 minuto e 11 segundos).
Sobre cada partitura, Satie escreveu uma história (veja quadro abaixo) e um prefácio para a obra. "Aconselho folhear este livro com um dedo amável e sorridente, pois é uma obra de fantasia. Não procure nela nada mais."
Considerado precursor no século passado da música clássica contemporânea, o compositor levava uma vida totalmente anti-esportiva, e um episódio ilustra isso.
No quarto em que morava, ele colocava as roupas -todas de veludo- em uma cadeira, deixando vazio o armário.
Segundo seus biógrafos, Satie entrava no móvel para fazer um tal "exercício de imobilidade", que ele preconizou para que os pianistas que fizessem antes de executar uma de suas obras.
Mesmo assumindo ter sido influenciado por Satie, Arthur Honegger (1892-1957) tinha um perfil diferente de seu compatriota.
Definido como um "sportsman", Honegger compôs em 1928 o movimento sinfônico "Rúgbi" -peça presente no CD- e fez a trilha sonora para o documentário "O Boxe na França", que tem um hino esportivo chamado "Sejamos Unidos, Amplos Peitos!".
"Les Classiques du Sport" traz também a marcha "A Entrada dos Gladiadores", do tcheco Julius Fucik (1872-1916), autor desconhecido cujo principal dado de sua biografia foi ter ser sido o regente de uma banda militar austro-húngara.
O restante do CD francês é todo ocupado por valsas e polcas austríacas e francesas.
Nessa área aparece Johan Strauss (1825-1899) e seu irmão Josef Strauss (1827-1870) com as peças "Sport-Polka" e "Jockey-Polka".
Na época da composição, faziam parte de uma orquestra que excursionava pela Europa e pelos EUA e não hesitava em aceitar encomenda de músicas, como a valsa "Acelerações", pedida por estudantes de engenharia de Viena para um baile. Johan Strauss, autor que levou a valsa vienense à máxima perfeição, fez a música em um dia.
Já Emile Waldteufel (1837-1915), chamado por alguns o "Johan Strauss francês", contribui com três de suas valsas para dançar -a principal é "Os Patinadores".
Para o maestro Júlio Medaglia, "Les Classiques du Sport" peca por uma presença ("Apesar do nome sugestivo, a inspiração para as "Gymnopédies' não tem nada a ver com esporte") e uma ausência ("Debussy compôs "Jeux', que é uma obra-prima e fala de tênis").
"Jeux" (em português, Jogo) é um balé curto ou, como o francês Claude Debussy (1862-1918) definiu, um "poema dançado".
Seu enredo, criado pelo bailarino russo Vaslav Nijinski -foi o primeiro a representá-lo-, começa com um jogo de tênis em um parque sob iluminação artificial.
A bola vai parar em um bosque vizinho, e o jovem e as duas garotas que jogavam vão atrás dela.
Nesse momento, segundo a trama, surge um ambiente de encantamento entre os três. A peça termina abruptamente com outra bola caindo no bosque, de repente, e assustando as personagens.
O balé, que tem duração de 18 minutos, estreou em 1913 e recebeu muitas críticas.
"É a obra mais transparente e abstrata música deste século. Eu a coloco entre as três obras que dão a virada do século passado para este, junto com "Sagração da Primavera' de Igor Stravinski e "Pierrô Lunar', de Arnold Schoenberg", afirma o maestro Medaglia.
Outro ausente da compilação é o russo Dimitri Kabalevski (1904-1987), que foi chefe do sindicato dos músicos no regime soviético e adepto da estética socialista. Ele compôs "No Ginásio" e "Jogando Bola", peças para piano.
Para aumentar a raridade, os brasileiros só podem adquirir "Les Classiques du Sport" se irem à França, pois a EMI fechou seu setor de música clássica no Brasil.
²


Colaborou Irineu Franco Perpétuo, free-lance para a Folha


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.