São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO
Samba triste

A analogia entre futebol brasileiro e samba é um clichê universal.
Prova disso foi a reação da imprensa australiana à sonolenta vitória da seleção olímpica sobre o time do Marconi, de Sydney.
"Os reis do samba reinam", estampou em sua contracapa o "Daily Telegraph", um dos jornais mais populares de Sydney. Com ligeiras variações, as reportagens dedicadas ao assunto pelos outros jornais repetiram o mote. Até o site oficial da Olimpíada (www.olympics.com), no texto dedicado ao assunto, repisa o lugar-comum.
A primeira vez que ouvi a relação futebol-samba explicitada foi naquela velha marchinha ufanista, se não me engano composta para comemorar a conquista da Copa de 58: "Eeeta esquadrão de ouro:/ é bom no samba,/ é bom no couro".
A bola já nem é mais de couro, nem o tamborim de pele de gato, mas a analogia continua correndo o mundo.
Para reforçá-la, oito entre dez jogadores brasileiros gostam de pagode (o nono prefere axé music, enquanto o décimo, música sertaneja). Alguns praticam, outros só escutam.
O principal menestrel da atual seleção olímpica é o goleiro Hélton, que anda com o cavaquinho para cima e para baixo e ensina os companheiros a tocar.
Pela companhia constante do cavaquinho, mas também por sua fala mansa, seu sorriso zen e sua gentileza sem limites, Hélton lembra o sambista Paulinho da Viola, embora fisicamente possa ser descrito como um Grande Otelo menino que tivesse crescido demais.
Ainda que o repertório dos boleiros seja composto basicamente pelos mais comerciais "sambanejos" que infestam a programação das rádios e TVs, Hélton figura no meio deles como um lembrete de que existe no Brasil uma linhagem mais nobre, que tenho dificuldade de definir.
Dos artistas populares brasileiros? A definição é ampla demais. Dos "sambistas de raiz"? Restrita demais. Do "homem cordial" brasileiro? Pior ainda.
Talvez seja mais fácil uma aproximação, digamos, "por amostragem". Hélton nos lembra uma estirpe que inclui figuras tão díspares como Cartola, Ademir da Guia, Dorival Caymmi e -claro- Paulinho da Viola.
O que há em comum entre eles é uma elegância profundamente brasileira. (Atenção, patrulhas: não estou dizendo que é melhor do que as outras, apenas que é diferente.)
Esse refinamento, essa elevação de espírito, nós os estamos perdendo dia a dia, a olhos vistos, na selva da sobrevivência num país sucateado. Triste Brasil.
E-mail jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: José Roberto Torero: Bugigangas para os outros
Próximo Texto: Guerreiro de sol e sangue
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.