São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2000

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Guerreiro de sol e sangue


Líder diz que aborígenes estão prontos para manifestações na abertura da Olimpíada


RODRIGO BERTOLOTTO
ENVIADO ESPECIAL A SYDNEY

Quando o dia estiver nascendo amanhã, 50 aborígenes vão erguer um acampamento vizinho ao Parque Olímpico, esperando um confronto com a força de segurança dos Jogos de Sydney.
O líder deles, Trevor Close, 37, afirma estar preparado para a violência. ""Antes, eu ficava preocupado com isso. Agora, não mais. Eu e os outros guerreiros vamos partir para a briga caso isso seja necessário."
Ele diz que cada ""guerreiro" terá uma lança e um nulla nulla, porrete das tribos locais.
Estão programadas incursões pela área de competição para divulgar o preconceito social e econômico que os povos aborígenes sofrem na Austrália -a mortalidade infantil e a expectativa de vida atingem níveis africanos.
A ação é vista como arriscada pelos anciãos, que tradicionalmente dão a última palavra na sociedade aborígene. ""É melhor uma manifestação pacífica", afirma Isabell Coe, que tentou persuadir seu afilhado Trevor.
Coe é a líder da Aboriginal Tent Embassy, entidade fundada em 1972, que hoje é a principal voz do grupo humano que representa 2% da população australiana.
Ao contrário de Close, ela obteve uma autorização para acampar no Victoria Park, centro de Sydney. Há um outro protesto ainda mais pacífico, perto do aeroporto, que recebeu a aprovação do comitê organizador dos Jogos.
""Podemos aproveitar a Olimpíada para mostrar os verdadeiros jogos: os jogos do genocídio, disputados há 212 anos, desde a chegada dos ingleses, em 1788. Mas não considero os aborígenes perdedores: somos vencedores porque sobrevivemos."
Entre 30 barracas do Victoria Park, os aborígenes mantêm sua fogueira sagrada tendo ao fundo uma música de George Michael saindo de um radinho.
Estudantes punks, surfistas e hippies engrossam o acampamento, que utiliza a estrutura da Universidade de Sydney, como banheiros e cozinhas.
Já as barracas vizinhas ao Parque Olímpico não terão o menor apoio de infra-estrutura. ""Estamos preparados para resistir até o final da Olimpíada", afirma Close, um escriturário que estuda direito e, há seis anos, fundou a entidade tribal Githabul.
Nasceu ao norte de Sydney em uma área de floresta, mas aos 15 anos se mudou para o subúrbio da cidade de 4 milhões de pessoas. Esse mesmo movimento migratório foi feito pela maioria dos aborígenes após 1967. Naquele ano, o Parlamento reconheceu os direitos sociais da população autóctone, e eles puderam deixar seus territórios.
Até aquele momento, prevaleciam as idéias da época da colonização, quando os ingleses declararam a Austrália ""uma terra despovoada", ou seja, os aborígenes legalmente não existiam.
Nas periferias, eles povoaram bairros que agora são dominados por quadrilhas de tráfico de drogas. ""A mídia e a polícia nos tratam como drogados, alcoólatras e bandidos. Na verdade, só alguns caminharam para esse lado, mas foi a reação deles a tanta discriminação", diz Close.
Atualmente, na Austrália, o principal tema é a indenização para as vítimas da Geração Roubada (em inglês, Stolen Generation). Até os anos 60, o governo separava as crianças aborígenes de suas famílias. Os garotos eram levados para uma instituição pública, as meninas, para outra. Alguns sofreram abusos sexuais. Só no Estado de Nova Gales do Sul, do qual Sydney é capital, foram registrados 3.400 casos.
A principal esperança de medalha da Austrália no atletismo, a corredora Cathy Freeman, tem uma história dessas: sua avó foi retirada de casa, e a atleta nunca mais teve notícia dela.
""Ela ainda tem a humanidade de representar o país que fez isso com sua família. Desejo tudo de melhor para nossa irmã negra Cathy Freeman", diz Close.
A organização dos Jogos pediu para Freeman não se manifestar politicamente, mas o presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional) liberou a atleta para comemorar sua eventual vitória nos 400 m com a bandeira aborígene.
Enquanto o panteão oficial australiano remete à bandeira britânica, a bandeira dos nativos tem uma listra vermelha (representa o sangue derramado), uma listra negra (a cor de suas peles) e um círculo amarelo (o sol) no centro. Para Close, é o símbolo nacional.
""Queremos que a ONU comece o processo de descolonização da Austrália. Isso aqui é um país de negros invadido por brancos. Queremos a independência sob as leis aborígenes. Se os 18 milhões de brancos querem ficar, vão ter de obedecer a nossas regras", empolga-se.
Apesar de ser um país independente desde 1901, a Austrália faz parte da Commonwealth, tendo como chefe de Estado a rainha da Inglaterra, Elisabeth 2ª.
Os aborígenes insistem que não são contra a Olimpíada e dão graças a seus deuses pela visibilidade que ela dá a suas causas. ""É a nossa chance de fazer com que o mundo olhe para nós", diz Close.
Protestos em Olimpíadas não são novidades e remontam a Londres-1908 (terceiros Jogos da era moderna), quando a Rússia, que invadira a Finlândia, quis impedir o hasteamento da bandeira do país. Atletas irlandeses também fizeram manifestações, pedindo a independência de seu país.
Em 1936, houve protestos nos EUA e na Europa contra a realização dos Jogos em Berlim, na Alemanha nazista. A própria Austrália assistiu em 1956, semanas antes do Jogos de Melbourne, a um inusitado protesto de jogadores de críquete do país que não queriam a reforma do Melbourne Cricket Ground, que seria o estádio Olímpico. Houve até greve na construção civil.

Sangrentos
Na história dos Jogos, no entanto, dois protestos sangrentos são os mais conhecidos. Em Munique, em 1972, oito extremistas do grupo palestino Setembro Negro invadiram a Vila Olímpica e mataram dois atletas israelenses e tomaram outros nove como reféns. Depois de um dia de negociações, foram transferidos para um aeroporto, onde houve tiroteio com a polícia alemã. Morreram todos os reféns, cinco sequestradores e um policial.
Na Olimpíada anterior, México-1968, dez dias antes do início dos Jogos, uma manifestação reuniu 10 mil estudantes na praça das Três Culturas, no centro da Cidade do México. Os estudantes protestavam contra a política econômica e a ocupação das universidades pelo Exército. A praça foi cercada pela polícia e pelo Exército e se seguiram cinco horas de confronto. Estima-se que de 100 a 300 jovens foram mortos, mas o total oficial jamais foi divulgado.


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