São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

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Tevez, "maloqueiro e sofredor"

Conheça a luta do menino que cresceu em favela e brilhou no Boca, de onde saiu para se apresentar hoje ao Corinthians

ADRIANO PESSINI
DO "AGORA", EM BUENOS AIRES

"Corintiano, maloqueiro e sofredor." A partir de agora, o grito da Gaviões da Fiel tem tudo a ver com a trajetória de Carlos Tevez. Em meio a um cenário de pobreza e violência, o argentino, que tem chegada prevista para hoje a São Paulo, conseguiu pela bola arrumar trocados desde os dez anos.
Morador de Fuerte Apache, misto de conjunto habitacional e favela de 3 de Febrero, município a noroeste de Buenos Aires, o garoto dividia seu tempo entre três times: o Estrellas del Uno, do prédio número um do Fuerte, o Santa Clara, que reunia todos os garotos do conjunto habitacional, e o Villa Real, de um bairro vizinho, que jogava a liga infantil do país.
"Ele era um menino bom, respeitador, mas que só queria jogar bola. Se não estivesse em casa ou na escola, era só procurar no campinho aí da frente", brinca o pedreiro e eletricista René Yucra, que cuida da casa onde Tevez viveu e onde ainda há troféus dele.
"Deve ter uns dez. Depois que ele ficou famoso, sempre vem alguém para levar mais um."
Nos finais de semana, Carlitos ainda defendia uma grana nos campos perto de onde morava. Aos dez anos, jogava com garotos com o dobro de sua idade. "Ele não sentia medo, encarava os marmanjos. Não sei quanto ganhava, podia variar de um refrigerante ou um dinheirinho, mas era pouca coisa", diz o vizinho Carlos, que, como boa parte dos moradores do Fuerte Apache, prefere não dizer seu sobrenome.
"Todos queriam o Carlitos em seu time. Também tinha um monte de aposta. O pessoal sempre apostava no time em que ele jogava", afirma Yucra.
Para se proteger dos maiores, Tevez usava dois pares de caneleiras: em cada perna, punha uma na frente e outra atrás.
"Eu o vi fazer isso muitas vezes. Ele dizia que daí poderia jogar como sempre jogava, sem medo. Tinha vezes também que ele colocava duas meias em cada pé. Mesmo com todas essas coisas, todo esse monte de proteção, ele não perdia a habilidade e a velocidade", diz Egidio Forastieri, que jogou por oito anos com ele no Villa Real.
Segundo Piño Hernández, técnico do infantil do Villa Real, Egidio era melhor que Tevez. "Os dois eram bons, mas Egidio era melhor mesmo", afirma.
"Tive problemas no joelho e não segui em frente", reclama Egidio, 20, com tristeza e saudade. Hoje ajuda o pai num serviço de fretes.
Teve melhor sorte que outro colega do Villa Real, o goleiro Darío Cabañas. Nascido no Fuerte, também atuou no Santa Clara com Tevez e eram grandes amigos. Os rumos mudaram quando ambos fizeram 17 anos.
Tevez, que já era do Boca, foi jogar o Mundial Sub-17 da Fifa pela Argentina, em Trinidad e Tobago. Cabañas, que jogava no Vélez Sarsfield, foi assassinado no próprio Fuerte Apache.
"Comentavam que o Darío estava envolvido com crime, alguns roubos e encontrou a morte cedo", conta Facundo, outro vizinho. Carlitos só soube da morte do amigo depois que a Argentina foi eliminada pela França, nas semifinais. O baque foi grande.
"Ele ficou muito triste, nem parecia o mesmo", afirma Facundo.
O responsável pela ida de Tevez ao Boca é Ramón Maddoni, que tem um currículo de olheiro respeitável. Aos 63 anos, já descobriu Riquelme, Sorín, Redondo, Cagna, Placente e Coloccini.
Sobre Tevez, porém, Maddoni não mede palavras. "Ele é a minha maior alegria no futebol", diz, com os olhos rasos. O jogador já afirmou muitas vezes que o considera como um segundo pai.
Para o técnico das categorias infantis do Club Parque, do norte de Buenos Aires, Tevez foi um achado bastante tranqüilo.
"Esse foi fácil. Ele jogou contra a gente, desequilibrou e falei para ele vir jogar conosco. Ele aceitou e começamos a trabalhar juntos."
Tevez atuava pelo Santa Clara. À época, jogava baby-futebol -uma espécie de futsal que se disputa com cinco na linha até os meninos completarem 13 anos.
Depois de trabalhar por 17 anos no Argentinos Juniors, há nove anos Maddoni está no Boca e foi para lá que ele levou Carlitos, então com 13 anos. Questionado sobre as maiores características do pupilo, não tem dúvida.
"Ele tem técnica, sabe jogar, sabe se portar em campo, tem sempre agressividade, não desiste nunca. E, para finalizar, treinou fundamentos aqui conosco", destaca.
Maddoni atualmente está acompanhando outro irmão de Tevez nas categorias de base do Boca -Miguelito, de 13 anos.
O treinador, no entanto, prefere esperar mais para dizer se o novo atleta vai vingar no esporte.
Em 1998, quando já tinha 14 anos e treinava no Boca, Carlitos arrumou outro modo de ganhar dinheiro: ser gandula do time principal.
Ninguém sabe quanto ele ganhava, já que o peso estava atrelado ao dólar e o poder de compra era outro, mas, segundo um diretor das categorias de base do Boca, o valor deve estar "por volta de uns 50 pesos[R$ 46]".
Mas não era o dinheiro que motivava Tevez a ser gandula e sim o sonho de tirar uma foto ao lado do ídolo Juan Román Riquelme.
Um dia, o meia, hoje no Villarreal da Espanha, aceitou a súplica. Tempo depois, o gandula seria seu parceiro na equipe. Em 2002, o Boca lhe alugou uma casa e lhe deu um Renault Scénic.
Agora, campeão olímpico, da Libertadores e do Mundial interclubes e valendo US$ 22 milhões, o jogador chega ao Corinthians para seu próximo capítulo.


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