São Paulo, sexta-feira, 13 de abril de 2001

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FUTEBOL
O último dos primeiros

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Caro leitor, como amanhã é aniversário do Santos e o clube já não ganha um Campeonato Paulista há 16 anos, como presente (e consolo) resolvi entrevistar o último dos seus primeiros campeões.
"Meu nome é Mário Pereira. Mas meu apelido era Perigo Loiro, porque eu era loiro e tinha um chute muito forte.
"Nasci numa rua que ficava na beira do cais. Eu jogava muito na várzea. Aí me convidaram para ir para o Santos.
"Entrei em 1935. Tinha 21 anos. Era moço ainda. O time só treinava uma vez por semana. E o meu chefe achava ruim que eu saísse mais cedo.
"No dia da decisão a gente foi de trem para São Paulo. O pessoal da estiva e os outros torcedores foram junto. Aí na estação da Luz a gente pegou uns carros de praça e foi para a Fazendinha.
"No estádio tinha gente pra chuchu. Principalmente da estiva. O Santos sempre teve uns times bons, mas sempre era roubado pelos juízes, então naquele dia o pessoal da estiva levou até gasolina para pôr fogo no estádio se fosse roubado.
"Era um domingo à tarde. A gente usava um uniforme bonito. As camisas tinham gola e os calções precisavam de cinto.
"Foi um jogo duro, disputado. O time do Corinthians era excelente. Tinha o Brandão, um center-half muito bom que também tocava saxofone, o Teleco, um center-forward que era o grande goleador, o Jaú, um negro corpulento, e o Brito, half-direito, que era um cavalo. Depois virou chofer de caminhão.
"Mas o nosso time também era muito bom. Era Ciro; Neves e Agostinho; Ferreira, Marteletti e Jango; Saci, Pereira, Raul, Araken e Junqueirinha. O técnico era o Virgílio Pinto de Oliveira, o Bilu, ex-jogador do Santos.
"Lembro de todo mundo. O Ciro era de Bica de Pedra e trabalhava nas docas. Neves foi um grande beque, clássico. Acho que depois abriu uma pensão. Agostinho gostava de tirar sarro, era brincalhão. Ferreira e Jango eram irmãos. Gaúchos. Moços muito finos. Marteletti era um quebrador de perna. Jogava pesado mesmo. Pegou doença de uma mulher e morreu de tuberculose. Saci era o ponta-direita. Tinha as pernas bem tortas. Era um sujeito conversado, falava bem. Depois do futebol foi trabalhar na estiva. Pereira sou eu. Raul, o center-forward, usava sempre um gorrinho porque a bola naquele tempo tinha cordão, machucava. Fazia Jogo do Bicho. Araken, meia-esquerda, era um grande driblador! Muito culto. Foi jogar na França e lá ganhou o apelido de Le Danger. Só do Junqueirinha eu não lembro muito bem.
"O primeiro gol foi do Raul. No segundo gol eu fiz um lançamento do meio de campo para o Araken lá na esquerda. A bola caiu atrás do Brito. O Araken deu uma chicotada e fez o gol.
"Quando acabou o jogo foi uma festa. Invadiram o campo. Na estação da Luz teve uma briga danada. Briga sempre existiu. E antes não tinha polícia.
"Quando a gente chegou em Santos foi aquela folia. A torcida foi esperar a gente na estação. Parecia Carnaval.
"Um camarada me colocou no cangote e me carregou até a sede, na rua Itororó. Aí ele subiu todas as escadarias me carregando nos ombros e quando chegou lá em cima me puseram numa mesa de bilhar.
"Acho que é a melhor coisa que eu lembro do futebol."


1937
Mário Pereira só jogou até 1937. Aí acertaram seu joelho e ele teve que parar com o futebol. Possui a cicatriz até hoje. Tinha apenas 23 anos e havia participado somente de três Campeonatos Paulistas. Como a contusão aconteceu pouco antes do Carnaval, naquele ano ele não pôde sair no Bola Alvinegra, o bloco de Carnaval do Santos. A fantasia ficou encostada num canto do quarto.

2001
Aos 87 anos, Mário Pereira mora numa casa espaçosa, comprada em 1944. Depois de parar com o futebol, virou fiscal de rendas e continuou neste emprego até se aposentar. É o único sobrevivente daqueles jogadores que venceram o torneio estadual de 1935, 66 anos atrás. Até hoje acompanha algumas partidas de futebol pela televisão. E seu sonho é ver o Santos mais uma vez campeão.

E-mail - torero@uol.com.br



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